O Avesso da pele e o sapo-pipa

O Avesso da pele e o sapo-pipa

Os noticiários recentes revelam o que as estatísticas já demonstravam: o sistema educacional brasileiro tem sido perverso com os menos favorecidos – a classe trabalhadora. Ou seja, o Brasil reverteu em 2022 a queda de dois anos consecutivos de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU, mas não conseguiu o índice de 2019 antes da pandemia e perdeu dois pontos no ranking do PISA, cuja classificação foi,  dentre os 81 participantes, o de  65º lugar em matemática e 52º em leitura.

Nesse contexto nasce a polêmica sobre o livro “O avesso da pele”, de autoria de Jefferson Tenório, lançado pela Companhia das Letras, vencedor do prêmio Jabuti 202o.  No livro, a personagem Pedro conta a trajetória do pai, um professor negro que morreu numa estranha abordagem policial. (É possível lembrar Amarildo ou operações na baixada santista). Como todo grande livro, o autor, por sua vez, lança mão da ficção para discutir questões sociais pertinentes ao nosso tempo: racismo estrutural, sistema educacional falido, dificuldades de relacionamento e pequenas tragédias familiares acontecidas também no seio de famílias menos favorecidas.

Lembro-me que em minha pós-graduação,  ensinava o professor Alexandre Bragion que: “um escritor produz a sua obra dentro de um tempo e de um histórico social”. Portanto, entendo, o escritor narra estórias possíveis dentro de uma sociedade, considerando as condições materiais existentes – por isso mesmo a literatura passa ser uma maneira inverossímil de contar a história. Nesse espírito, em muitas ocasiões, o autor lança mão de diálogos possíveis na sociedade para dar credibilidade a sua escrita e fugir do artificialismo – prática facilmente percebida por leitores proficientes  que têm condições de travar o bom debate e fazer com que textos clássicos, com os de Machado de Assis e Dostoievski, ultrapassem as barreiras do tempo.

Espírito do nosso tempo, o analfabetismo funcional que hoje atinge jovens e adolescentes está presente também em toda a esfera pública – inclusive no Congresso Nacional, no executivo de estados e prefeituras onde os obscurantistas, carentes de discernimento, levantaram vozes provenientes das catacumbas – as mesmas que combateram a ciência em tempo de pandemia – para condenar o livro pela leitura de uma única pagina. Diria o Nelson Rodrigues: “os imbecis perderam a modéstia”. Completado que poderia ser por Arthur Schopenhauer, que nos disse que citar livros que não se leu é como emitir cheques sem fundos, um estelionato.

Com o advento da tecnologia, indigentes intelectuais, no estilo passa boiada, se apressam em gravar vídeos, buscando a monetização e sobretudo a consideração de um público que ainda confunde fato com opinião – e que é presa fácil para a divulgação de notícias falsas e comentários descontextualizados sobre literatura, política, justiça e sociedade. Como o senso comum é mais fácil por não exigir o pensar, o papagaio e o sapo-pipa – pertencentes a uma casta que defende uma ideologia perversa que visa a vigilância da sociedade através dos costumes, usando Deus como cabo eleitoral – tornam-se formadores de opinião. O resultado é a promoção pessoal, pois assim podem se orgulhar sempre daquilo que deveriam se envergonhar.

A leitura proficiente, ensinava a professora Josiane Maria de Souza, é um gesto solitário, que, entretanto, possibilita uma viagem imaginária que nos faz visitar outras civilizações e nos obriga, sobretudo, a fazer interações com personagens e autores de outros universos, formando a nossa posição pessoal sobre questões complexas  da vida humana. Quem passa por essa experiência e adota essa prática, dispensa tutores e consultores desqualificados das redes sociais.

Importante frisar que alguns oportunistas que investiram contra esse belo livro, do qual não fizeram a leitura, em outros momentos fizeram citações de Olavo de Carvalho, cujo autor também não leram, conscientes ou não de que este, por falta de erudição, faz uso constante de palavrões como muleta – objetivando dar crédito às suas afirmações levianas, sem referências e sem credibilidade, como já confirmadas no meio intelectual. Outros, do mesmo calibre, continuam aplaudindo a um personagem que desgovernou o Brasil nos quatros anos do último governo; este, por ser detentor, possivelmente, de um universo de quinhentas palavras, utiliza-se constantemente do palavrão como muleta para formar sentenças linguísticas, na maioria das vezes reprováveis.

Ciente de que as mãos que fazem arminhas normalmente não se dão bem com o manuseio de bons livros, chegou, portanto, o momento da sociedade letrada agir com vigor para que a ignorância que insiste institucionalizar-se volte ao seu lugar de origem: o lixo da história.

Para tanto, a leitura do livro  “O avesso da pele” é imprescindível.


 

Gilmair Ribeiro da Silva é professor. Participa de diversas coletâneas e  é autor do livro de poesias “Os muros e o silêncio da Cidade”.

gilmairribeiro15@gmail.com

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