No berçário já foi assim. Ele se esgoelando, ela nem a fim. “Diabo de criança mais surda! Um dia você ainda vai ouvir falar de mim”. Mas ela nunca ouvia. No pré, a coisa seguiu. Ele, pulando afobado. Ela, com cara de tédio, olhava o parquinho lotado. “Um dia você ainda vai ouvir falar de mim,” ele insistia. “Diabo de menina mais fria.”
No primário, a saga continuou. Na hora de entregar a cartilha aos alunos, foi ele quem o nome dela gritou. Só que a sonsa não percebeu, pegou o livro, o pôs debaixo do braço e saiu. “Diabo de menina esquisita,” ele disse. A sala toda riu. Só ela não entendia. “Um dia você ainda vai ouvir fala de mim,” a turma inteira repetiu.
No ginásio, a história foi a mesma. Ele chamando por ela, ela sempre voando. “Diabo de garota mais chata, diabo de garota mais tonta.” Ele o tempo todo aprontava, só para ver se ela o via. E ela nunca notando o que o pobre tanto fazia. “Diabo de garota mais boba. Um dia você ainda vai ouvir falar de mim,” ele insistia.
No colegial, não foi diferente. No meio de tanta gente, era só ela que ele via. E ela nem ligava, nem queria. Entraram na faculdade, depois saíram formados. Ele sempre chamando, ela nunca notando os chamados do coitado.
Um dia, para desespero do infeliz, a moça conheceu um tal e casou. Pois, na igreja, na sacristia, enquanto ela casava, ele sozinho chorava o amor que não vingou. “Diabo de moça cruel. Diabo de vida vazia.”
Foram˗se os anos, a vida foi passando. Mas, passando daquele jeito. Ela continuava casada. Ele, sem querer saber de nada, apenas vivia esperando. “Diabo de vida malvada, diabo de moça ruim.” Mesmo sem saber o porquê, no fundo no fundo repetia: “um dia você ainda vai ouvir falar de mim.”
Quando ela se aposentou, atrás dela, na fila da aposentadoria, ele também estaria. “Está tudo quase acabando, mas ainda assim acredito, por mais que eu já não seja jovem e bonito, que um dia você ainda vai ouvir falar de mim. Diabo de velha avoada, diabo de amor esquisito.”
No asilo, deitados lado a lado nas camas da enfermaria, ela finalmente o veria: “não lhe conheço de algum lugar?” − ela por fim indagou. Ele, todo nervoso, meio desajeitado, ainda pensou: “eu não disse que um dia você ainda ouviria falar de mim?” Mas nem deu tempo direito. Enquanto ele grita “sou eu, o Dirceu, o Dirceu!…”, a velha deu seu suspiro derradeiro, fechou os olhos e morreu.
“Para tão grande amor, tão curta a vida”, ele ainda insistiu, puxando pela memória uns versos de Camões. “Mas não tem nada não,” redarguiu. “Deixemos assim. Daqui a pouco eu também passo para o outro lado. E, então sim, tenho certeza, você um dia você ainda vai ouvir falar de mim. Diabo de falecida. Diabo da minha vida” − disse sorrindo, e partiu.
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Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.
In ou felizmente,os anos e a vivência nos faz pensar,agir ou deixar de agir.
Muitas vezes,só vai no coração … E nem precisa ser a Moça vestida de Branco.
Abraços fraternos.
Erico