Não poderia ser diferente. A capa do primeiro número do semanário francês “Charlie Hebdo”, publicado nesta quarta-feira (14) – uma semana após o ato terrorista que vitimou fatalmente 12 de seus integrantes –, só poderia mesmo ser antológica.
A edição está sendo lançada simultaneamente em mais de 20 países, tem tiragem de mais de 3 milhões de exemplares (ao contrário das 60 mil habituais) e foi traduzida em 16 idiomas, incluindo o árabe e o turco.
Preparada pelos sobreviventes do ataque, o novo número traz na capa uma caricatura do profeta Maomé empunhando um cartaz no qual se lê a frase lema das manifestações mundiais após o atentado: Je Suis Charlie. O profeta tem ainda uma lágrima nos olhos. Complementando o desenho, a cortante e emblemática afirmação: Tout est pardonné (tudo é perdoado).
O cartunista Luz, autor da caricatura, disse à imprensa mundial ter retratado um Maomé que, antes de tudo, é “um homem que chora”. Gerard Biard, chefe de redação do “Charlie,” disse por sua vez que o Profeta desenhado é muito mais simpático do que o adorado pelos homens que dispararam contra os jornalistas do semanário.
Estampada no fundo verde (esperança?), a frase “tudo é perdoado” engendra força à força do desenho de Luz. Polissêmicas, frase e caricatura permitem assim leituras que se complementam e, de alguma forma, nos colocam em xeque.
Afinal, se por uma via podemos pensar que nesse “tudo” – de “tudo é perdoado” – está incluído o humor ácido do Charlie Hebdo, poderíamos imaginar também que – dita no desenho por Maomé – a palavra “tudo” englobaria ainda os próprios assassinos do pessoal do Charlie?
Da mesma forma, se entendemos que a lágrima derramada pelo Profeta é dirigida aos mortos e feridos no ataque terrorista (e a todas as vítimas do terrorismo em si), podemos pensar também que ela cai dos olhos do Profeta por piedade para com todos aqueles que se lançaram e se lançam em atentados terroristas em seu nome?
Certamente sim.
A polissemia do choro e do “tudo é perdoado” não deixa de, por outro lado, ressalvar um certo tom de lamento e tristeza. O choro do Profeta atingiria a todos – de qualquer credo, nação ou condição social –, inevitavelmente subjugados pela força da violência, da intolerância religiosa e de balas mortais disparadas em nome de uma determinada entidade suprema.
Por sua vez, a expressão que encabeça a figura de Maomé não deixa também de, um tanto à distância e muito ironicamente, remeter o leitor às bíblicas sentenças cristãs: “perdoai-vos, Pai, pois eles não sabem o que fazem” e em especial a “tudo está consumado” (ditas pelo Cristo crucificado).
Entre perdões, consumações terrenas e em meio a atentados à vida, à liberdade e à humanidade, fica a esperança (verde!) de que a edição do “Charlie Hebdo” – que hoje roda o mundo – seja entendida mais como uma continuidade necessária ao pleno direito de existir (e de criar) do que apenas como uma provocativa resposta à violência sofrida.
Que os deuses (nos) perdoem a todos.
Somos todos Charlie.