São poucos os diretores que têm culhões para fazer filmes que se opõe ao senso moral e religioso. Os que se arriscam acabam deixando suas obras caírem no esquecimento, pois enfrentam o boicote da crítica e do público em geral. Por outro lado, e com diversos paradigmas quebrados, alguns desses filmes estão voltando à tona, alcançando uma maior gama de cinéfilos através da internet – na qual a facilidade na troca de informações reaviva a alma de películas outrora renegadas.
Os Demônios (The Devils), de Ken Russell, é um desses filmes que chocaram a sociedade ao ir para as telonas em 1971, tendo sua poíbição garantida em diversos países. A fama do diretor já era controversa, marcada por películas provocantes – como Women in Love e The Boy Friend – ao colocar em suas mãos um roteiro baseado em fatos históricos que retratam um período obscuro da igreja católica. O resultado obtido é no mínimo sádico e perverso.
A película está ambientada em Loudun, França, no ano de 1634, quando o padre Urbain Grandier é condenado à fogueira por feitiçaria, após sofrer acusações de ter feito um acordo com diversos demônios para possuir as freiras ursulinas. Ken Russell prefere, na verdade, retratar esses acontecimentos de forma conspiratória, com imagens de deixar até os ateus de olhos arregalados.
De início, acompanhamos o Cardeal Richelieu, que está influenciando o rei francês Louis XIII, e buscando se fortalecer cada vez mais social e politicamente – derrubando diversas cidades fortificadas para evitar uma revolta protestante. É então que somos apresentados ao robusto e charmoso padre Grandier, governador de Loudum após a morte de seu sucessor durante a peste negra. Grandier desconhece a obsessão sexual que a freira Joana dos Anjos sente por ele – ao mesmo tempo em que ele próprio mantém um caso com Madeline de Brou.
A bola de neve aumenta a partir do momento que, para demolir Loudum, Richelieu precisa dar cabo de Grandier, o que faz com que ele contrate um padre lunático e inquisitor, Pierre Barre, para conseguir acusações suficientes e mandar à fogueira o homem que está entre o Cardeal e seu objetivo. É então que eles recorrem à irmã Joana, torturando a mulher em público até uma confissão de possessão supostamente decorrente de seus pervertidos desejos em relação ao padre. Conseguindo chantagear as outras freiras com ameaça de morte e descobrindo outros casos de Grandier, Richelieu consegue a tão almejada execução do homem, pondo a cidade abaixo.
O grande diferencial do filme são as sequências que dão conta de retratar os delírios da irmã Joana dos Anjos – e mostram cenas de sexo entre ela e Grandier. Ken Russell acaba levando essas alucinações a outro patamar ao colocar símbolos cristãos, mostrando até mesmo o coito com a figura de Jesus Cristo. Sim: essa película não é para todos. Sua história complexa é contada de maneira densa, dando o tom sinistro necessário a uma narrativa tão obscura quanto essa.
O filme possui grande enfoque no que diz respeito à direção de arte. Entre igrejas, castelos, cidades medievais e ilusões bizarras, o espectador se vê presentado com um deleite visual impecável, reforçado pela ótima fotografia, com movimentos de câmera excêntricos e funcionais.
A obra ganha mais peso ainda ao apresentar um elenco com atuações soberbas, principalmente por parte de Vanessa Redgrave, que trás uma voracidade brutal para a personagem Joana dos anjos. Oliver Reed está bem canastrão em comparação com os outros atores e atrizes que compõe o filme, porém não deixa de ser funcional para o papel de um padre sedutor. Muito além desses dois há uma gama enorme de coadjuvantes bem preparados que não deixam cair o brilho da obra.
A trilha sonora é incômoda e irônica, assim como a essência do filme em si. O tempo todo, ficamos entre músicas estranhamente alegres para uma determinada situação e sons grotescos ao extremo – como intermináveis gritarias de exorcismo banhadas a notas de instrumentos desconexos. É de se espantar a qualidade e a riqueza dessa película.
A censura acaba nos afastando de verdadeiras obras de arte do cinema, tanto que é difícil encontrar uma cópia decente do filme até mesmo nos infinitos sites de downloads pela rede virtual. Definitivamente, Ken Russell faz história ao contar fatos controversos de maneira bela e ao mesmo tempo brutal. Até mesmo essa geração acostumada com tanta violência cotidiana termina uma sessão de Os Demônios boquiaberta e chocada – sendo inegável o valor artístico dessa obra.
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Ramirez Ballota é aluno do 2º semestre do curso de Cinema da Universidade Metodista de Piracicaba
Fiquei em duvida entre comentar ou não este texto, afinal não assisti o filme, seria injusto qualquer opinião sobre a ARTE contida nele, neste ponto a visão técnica do autor do texto me parece bem colocada, mas quanto ao roteiro seria justo de minha parte dizer que NÃO aprecio qualquer arte que possa ferir os valores de uma multidão tão grande quanto a massa católica, ser opositor ao senso moral e religioso não dá direito a criar uma ARTE negativa sobre os valores de determinado grupo social, acho incrível a falta de bom senso destes diretores que buscam resultados financeiros tentando vender polemicas através da desconstrução de valores, a isso chamo de capitalismo selvagem, afinal a busca pela fama e pelo resultado financeiro das tão almejadas bilheterias valem mais que as tradições e valores de toda uma parcela da sociedade.
O cinema como arte tem diversas finalidades nobres, como entreter, divertir e ensinar. Criar arte é agregar valores positivos aos seres Humanos afim de que a passagem pela vida seja mais agradável buscando a felicidade como alvo.
Acredito que bons diretores são aqueles que fazem o ser Humano se sentir melhor quanto pessoa, e a verdadeira ARTE cinematográfica é aquela que ao FIM o espectador sai melhor e mais feliz do que quando chegou.
Espero que os jovens que irão construir o futuro da ARTE Cinematográfica o façam voltados ao bem e para o bem das grandes massas, usar a arte para desconstruir valores me parecem ser arte de arteiro e não de artista.
Acho que um roteiro bem escrito (ou qualquer tipo de ARTE), tem sim o direito de dizer o que quiser. Incomode quem quer que incomode.
Pela resenha, o filme não é um ataque deliberado (e desrespeitoso) a alguma religião em questão. E sim uma interpretação artística de um fato histórico. Não precisa ter medo 😉
Muito boa a resenha por sinal 🙂
algumas massas sociais são mais tolerantes, outras menos, ofender chamando isso de arte é pobreza de inspiração, algumas massas proíbem ou ignoram, outras tem uma reação mais ativa, troquemos o padre por Maomé e vejamos o desenrolar. A massa ocidental tem hoje a lei e os direitos a reparação aos danos morais, não acredito que a industria cinematográfica volte a perder tempo ou investir em temas que gerem enchentes de processos judiciais alem da proibição, Recentemente um grande jornal da capital paulista publicou uma matéria duvidosa sobre uma igreja evangélica, recebeu mais de cinco mil processos espalhados em quase todo território nacional, acionado por seus fiéis, acho que a conta judicial custou o emprego do repórter. assim hoje em dia os direitos a dizer o que quer e como quer existe, mas pode custar caro.
Caro Idinaldo.
Agradecemos a você, mais uma vez, pela leitura sempre atenta e fiel de nosso Diário. A opinião de nossos leitores sempre é muito importante para nós – seja essa opinião semelhante ou contrária à nossa. Acreditamos que debater sobre Arte e Cultura é um dos importantes caminhos que podem levar nossa sociedade – em geral – a conhecer, interessar-se e estudar mais sobre esse universo muitas vezes tão deixado de lado.
A excelente resenha de Lucas Ballota – que estreia em nosso site – ao expor e debater acerca de uma obra polêmica só poderia, mesmo, gerar polêmica e debate. Isso por que o resenhista escolhe como corpus de sua análise um filme que – como aponta a resenha em questão – é naturalmente provocativo e nos coloca diante de inúmeras discussões. Fato que, a nosso ver, é sempre positivo!
Acima de tudo, acreditamos que tanto o filme quanto a resenha valorizam aspectos importantes da arte – como seu caráter arreligioso e amoral. Quer dizer, a resenha e o filme reafirmam que a arte não tem o compromisso de atender a preceitos religiosos, políticos, ideológicos ou morais. Quando ela faz isso, abandona sua natureza e se submete à camisa de força social. A Arte é jogo, é criação, ficção. Dar a ela crédito de verdade é – minimamente, perigoso.
Novamente, parabenizamos o resenhista pelo trabalho publicado e agradecemos a leitura e o debate sempre interessante – proporcionado pelos nossos leitores – que se abre democraticamente neste espaço!
Cordiais saudações!
Alê Bragion – editor do Diário do Engenho.
Alê, parabéns a você e ao Ramirez, a analise técnica é muito bem colocada, o roteiro inspira forte polemica até para os dias atuais, imagina a 4 décadas atrás, é quase impossível não comenta-la destacando o ponto de vista das grandes massas, infelizmente para uns e felizmente para outros a arte esta submissa aos valores da sociedade, até porque se vende o que o povo compra e a arte não deixa de ser um produto de consumo, e quem determina o consumo é a própria massa consumidora, a exemplo vem o sucesso do rodeio, talvez eu nunca venha a entender, mas é assim que funciona. abraço.