Nunca imaginei que meio século pudesse passar assim tão rapidamente. Cinquenta anos é mesmo um tempo interessante, pois já permite um considerável acúmulo de experiências e memórias. Isso não quer dizer que há alguma sabedoria, definitivamente cinquenta anos parece muito pouco para se tornar sábio. Mas já é tempo suficiente para discernir melhor sobre algumas escolhas, observando o tempus fugit sem deixar de vislumbrar as possibilidades de futuro.
O mês de maio é um convite para se contemplar o passado, buscando interpretá-lo melhor, para que as escolhas sejam mais éticas e justas com a própria história. Dois eventos se destacam: a Lei Áurea, promulgada em 13 de maio de 1888 e a celebração do dia das mães, que acontece no segundo domingo do mês de maio. Interessante refletir e ponderar sobre como esses eventos, essas datas comemorativas se cruzam e ganham sentido em minha trajetória pessoal demarcada agora por 50 anos de existência.
Minha mãe, dona Paula, nunca gostou muito de falar sobre o período da escravidão imposta para a população negra. Certa vez perguntei se ela, em suas memórias ancestrais, no conhecimento tecido e transmitido por suas avós e tias, sabia de algum relato de parentes remotos que haviam passado pelo sofrimento da escravidão. Lembro-me que ela ressaltava apenas que essa era uma memória com muitas perdas e tristezas, algo abominável e muito difícil até de falar. As vicissitudes e dores dos antepassados, trazidos forçosamente de mãe África, doía forte dentro dela também. E deveria doer em mim.
Dona Paula e tia Maria (a Lia na intimidade de casa) se constituíram como mulheres fortes e autênticas, marcadas por uma vida migrante de muito trabalho, múltiplas privações e violações de seus direitos mais básicos de cidadania. Mas apesar de tantas experiências de muito sofrimento, nunca deixaram de ensinar a esperança. Uma esperança profundamente ativa, inspirada em uma história singular de luta e resistência ancestrais.
Minha mãe dizia, resgatando relatos de uma memória mais que centenária, que nossos antepassados conheceram o próprio Zumbi dos Palmares e que ajudaram a forjar muitos quilombos lá na região da Bahia, na Serrinha. Essa era uma memória familiar, cheia de orgulho. Quem a contava eram as mais velhas, as avós e tias. Os homens também traziam essa importante memória, mas era a voz das matriarcas que se sobressaia nas rodas de conversa, explicava dona Paula, com sua voz tomada por grande saudade e emoção. Outro dia, estando com minha mãe, em uma conversa utilizei a expressão “griô”. Ela sorriu e perguntou se eu tenho reservado tempo para falar para minhas filhas quem elas realmente são. Falar sobre a ancestralidade que pulsa em tantas memórias de resistência. Memórias que não se resumem às experiências de escravidão e dor. Memórias de muito afeto e esperança!
Dona Paula nunca deu importância a tal princesa Isabel. Ela insistia em repetir que a liberdade é sempre uma difícil conquista, como foi no passado e continua sendo no contemporâneo. Não espere nada de graça dos outros, construa seu próprio caminho, sem nunca esquecer quem você realmente é, enfatizava ela, especialmente diante das situações mais adversas. Por isso dona Paula exigia tanto que eu e meus irmãos estudássemos. Tornei-me então amigo dos livros. Agora, contemplando meus 50 anos, compreendo um pouco mais o tempus fugit e faço um esforço de memória para recuperar, como um aprendiz de griô, os relatos dos mais velhos, que compartilhavam seus conhecimentos em tantas rodas de conversa ou de mesmo de samba, lá no fundo do quintal de casa.
Prof. Adelino Francisco de Oliveira. Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba. Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião.
adelino.oliveira@ifsp.edu.br