Temer e a Semiótica: uma análise simbólica do golpe.

Temer e a Semiótica: uma análise simbólica do golpe.

Temer vampiro

Para quem não conhece de perto a história da chamada linguística moderna e suas vertentes, talvez caiba sugerir nesta introdução a leitura (mesmo que seja de alguns textos) daquele que costuma ser apontado como um dos pais – se é que podemos simplificar a coisa a esse ponto – do Pragmatismo e dos Estudos Semióticos: Charles Peirce. Nascido nos Estados Unidos, em 1839, Peirce – que estudou em Harvard e formou-se em Física, Matemática e Química – também se dedicou exaustivamente ao estudo da Filosofia e da Linguagem, tendo escrito mais de 80 mil páginas de textos esparsos nos quais se encontram ensaios, artigos, resenhas e outros tantos. Dentre esses, certamente o ensaio “Como Fazer Claras as Nossas Ideias” (de 1878) é um de seus mais importantes. Considerado como fundante da Pragmática, esse ensaio se faz, hoje – em tempos de crise e golpe de estado – leitura obrigatória.

Sem adentrarmos exaustivamente às questões de Peirce em tal ensaio, cumpre reconhecer que suas afirmações acerca da construção da realidade aparente e dos símbolos que nos norteiam podem ser um instrumento poderoso para refletirmos, com um pouco mais de cuidado, sobre a crise política que subjugou a sociedade brasileira nos últimos dias, quando da posse ilegal de Michel Temer na presidência da República. Isso porque, à luz de Peirce, entendemos que, como nos propõe o pensador, o estabelecimento de uma crença é o único fim de qualquer indagação ou processo. E, estabelecida uma crença, ainda que ela não conduza imediatamente a um ato em específico, ela torna possível (e mesmo tolerável por aqueles que compartilham de tal crença) a prática ou a previsão de determinadas condutas – mesmo que arbitrárias – ou ações e reações que poderiam ser (num contexto exterior à crença estabelecida) consideradas execráveis.

Dessa forma, e ainda segundo Peirce, para desenvolvermos o conteúdo de uma ideia necessitamos determinar previamente o comportamento que tal ideia é capaz de suscitar. E, de acordo com Peirce, nasce aí o conceito de “significação.” Ou seja, por mais sutis que sejam as distinções do nosso pensamento, o que realmente importa a partir dele são as  suas consequências práticas. Assim, e nos ensinando como construir significados (e ações esperadas a partir da criação de tais significados) Peirce nos ensina a importância do signo ou representação. Quer dizer, para Peirce, um signo é qualquer coisa que esteja em qualquer relação com outra coisa. Ou, como gostamos de simplificar, um signo é uma coisa que significa outra. Por assim ser, é nessa linha, peirciana em sua natureza semiótica, que entendemos que governo golpista liderado por Temer dialoga com a Semiótica e a Pragmática que hoje conhecemos. Afinal, partindo de uma análise estética e semiótica, nada parece atualmente, no campo da política nacional, mais simbólico do que os atos e ações execráveis tomados pelo governo interino de Temer em apenas alguns dias no poder.

Nesse sentido, importa reconhecer que tudo em Temer e em seu (anti)governo é alegórico, simulacro e simbólico – desde o laquê que lhe tolda os cabelos até o modelo familiar (belo, recatado e do lar) vendido por ele à sociedade. Assumindo uma atmosfera cafona e anacrônica, cheia de arcaísmos e mesóclises despropositadas, até mesmo o “português” de Temer é propositadamente alegórico – querendo significar à população a ascensão ao poder de um  exemplar  “casto e falante do cunho vernáculo nato da última flor do Lácio” (para usar uma expressão bem à moda do presidente golpista). Suas ações políticas, da mesma forma, são mais simbólicas do que realmente pensadas para resolver os problemas econômicos que afligem a nação. Por isso, faz-se reconhecível, por exemplo, o fato de que a extinção do Minc (que detinha um dos menores orçamentos dentre todos os ministérios do governo federal) destina-se muito mais a atingir a classe artística que se opõe ao governo ilegítimo de Temer (denotando também o desrespeito desse governo ilegítimo à arte e à cultura) do que propriamente representa uma importante dimunição de gastos públicos do país.

Esteticamente pensados, os atos políticos de Temer assim são dirigidos, em especial, para a contemplação estupefata da classe média (igualmente falsa e alegórica) que saiu às ruas para defender a ascensão de Temer e do PMDB ao posto maior do Estado. E, nessa trilha, extinguir ministérios como o da Cultura e o dos Direitos Humanos nada mais significa, nesse sentido, que um alinhamento ideológico às linhas alienadas da elite que lutou por sua chegada ao poder. Afinal, qual grupo social pouco se importa (e sempre pouco se importou) com Cultura, Arte e Intelectualidade? Acatando aos padrões da burguesia nacional (enfurecida com a atenção de Lula e Dilma aos menos favorecidos), as escolhas de Temer e de seu séquito sobre quais seriam os ministérios a serem extintos (sim, é fato que um enxugamento nessa área era necessário) revelou, mais uma vez, que os atos e ações do governo que tomou de assalto o país são muito mais simbólicos e alegóricos do que propriamente econômicos.

Imputada em grande parte da nação a crença (como nos diz Peirce) de que o PT (e Lula e Dilma) são os carrascos do país (e o mal a ser combatido a qualquer custo), Temer e o PMDB acenam simbolicamente com atos políticos que (corroborados por tal crença) tocam diretamente, com leveza e carinho, o coração da burguesia golpista – apoiadora de Temer. Simulacro de uma realidade idealizada por essa burguesia, a verdade do governo que se apossou do poder trasveste-se de justiça e racionalismo. Em nome de uma pseudo-correção dos rumos econômicos do Brasil, Temer e seus paladinos já anunciam a extinção de programas sociais e de outras ações PTistas voltadas para o socorro dos mais necessitados. Alegoricamente assumindo o papel de justiceiro, o presidente golpista fere àqueles que ao longo da história do país sempre arcaram com as dores da exclusão econômica e social. Porém, no jogo de cena, e em contraposição aos ataques aos mais necessitados, TVs e jornalões nos mostrarão uma classe média feliz e radiante, cada vez mais esperançosa “com os novos tempos que se iniciaram.” Que os ratos e os urubus roam essas fantasias!   Nem Joãozinho 30 teria tamanha astúcia em suas alegorias…

Por fim, e ainda no campo do simbólico, do simulacro, o pior de tudo é perceber que até mesmo o PSDB – articulador e apoiador do golpe de Temer – faria melhor que o partido que ilegitimamente assumiu o poder. Quer dizer, no campo das falsidades e das aparência, talvez nem mesmo o PSDB fosse capaz de ousar tanto. Talvez nem mesmo o PSDB tivesse coragem para tal jogo simbólico. Talvez. No campo do que seria pior para o Brasil, certamente essa é a grande dúvida.

Lamentável.

Que Peirce olhe por nós de onde estiver.

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Alexandre_-_JP_-_21dez08[1]

 

 

 

 

Alê Bragion é doutor em Literatura Comparada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do curso de pós-graduação em Literatura e Outras Linguagens da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Músico e professor, é também o editor responsável pelo Diário do Engenho.

2 thoughts on “Temer e a Semiótica: uma análise simbólica do golpe.

  1. Sempre aprendendo, Alexandre, com seu conhecimento, sua cultura, seu olhar especial e sensível sobre a vida, sobre a alma,sobre o país e sua difícil e assustadora atual situação.
    Sempre aprendendo com sua coragem.
    Obrigada.
    Parabéns!

  2. O texto propõe uma interessante e sugestiva hermenêutica do grave momento atual que vivemos. É preciso compreender para melhor resistir e lutar.

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