Parte I: dos escravizados e a cidade
por Rafael Gonzaga de Macedo
Nsanda é o nome de uma árvore originária do Centro Sul do continente africano. Ela é semelhante à figueira. No século XIX, a esmagadora maioria dos escravizados traficados para a região do sudeste brasileiro advinham dessa porção da África. Segundo o historiador Robert Slenes, os africanos bantu costumavam plantar uma muda de Nsanda em uma região que pretendiam fundar uma vila, se a muda pegasse era porque a terra era boa e, portanto, habitável. Outro motivo para o culto a essa espécie, é que ela apresenta um tronco com muitas raízes, o que remete à ancestralidade, que sustenta a presença dos vivos na terra.
Nos últimos tempos temos testemunhados uma espécie de efervescência cultural ligada aos movimentos identitários, como o feminismo e o movimento negro – e suas intersecções. Em Piracicaba, partindo principalmente de fontes orais, inúmeros trabalhos e atividades ganharam vulto e espaço, com destaque para o Samba de Lenço e o Baque Caipira, que hibridiza maracatu com cultura caipira de forma única. Também existem excelentes pesquisas sobre a história de Piracicaba e da escravidão na cidade. Além de teses e dissertações sobre o tema, muitas delas são oriundas de monografias feita pelos estudantes do curso de história da UNIMEP. No entanto, parece-me que falta divulgação dessas pesquisas e seus resultados. É pensando nessa lacuna que decidi transformar uma pesquisa de iniciação científica – feito em coautoria com a aluna do curso de história da UNIMEP, Cínthia Simões de Souza, em uma série de artigos para o Diário do Engenho.
Explorando antigos documentos jurídicos, como sumários-crime produzidos entre 1820 e 1850, arquivados no Centro Cultural Martha Watts e as atas das reuniões de vereadores da Câmara Municipal do mesmo período, procuramos sinais e evidências da experiência vivida de escravizados na cidade de Piracicaba. Estes documentos permitiram uma compreensão e uma análise da forma como as tradições culturais africanas foram percebidas, vividas e representadas por escravizados, pessoas livres e autoridades da cidade de Piracicaba. Por meio de uma leitura “a contrapelo” foi possível perceber como que se davam as relações entre os escravizados, relações estas caracterizadas, muitas vezes, pela violência e, a partir disso, procurar rastros dos possíveis espaços de socialização nos quais tais relações existiram.
Na primeira parte dessa série, abordarei um pouco a história de Piracicaba, trazendo para a superfície alguns dados que mostram a composição demográfica e étnica de seus moradores nas primeiras décadas do século XIX. Nessa época, o Oeste Paulista começa a ser intensamente ocupado, graças à descoberta de ouro no interior do país. Essa região do Estado de São Paulo incluía localidades como as atuais cidades de Campinas, Piracicaba (Vila Nova da Constituição), Rio Claro e Limeira. Antes do início da ocupação, a região era caracterizada por sua cobertura florestal e pela presença indígena. Os poucos habitantes viviam em pequenas comunidades e suas atividades eram para subsistência. Por ser uma região sem muitos atrativos econômicos, ela teve pouco desenvolvimento durante o período colonial e existia, portanto, dificuldades de comunicação e transporte entre as diferentes localidades.
Antes de 1820, o sistema de propriedade agrícola adotado nessa região se baseava no direito português referente às terras, ou seja, o regime de sesmarias. As terras eram concedidas às pessoas que tinham interesse em lavrá-las e sua produção era destinada à exportação para Portugal e deveria fornecer gêneros tropicais ou minerais. O elemento fundamental para a agricultura era a grande propriedade, monocultura e escravocrata, correspondente à produção em grande escala.
No sertão paulista e, por consequência, em Piracicaba, as concessões de terras de sesmarias ocorreram no período do bandeirantismo, principalmente no de caráter minerador. Para que fosse possível obter essas terras por direito era necessário, na maioria das vezes, que se tivesse prestado serviços aos bandeirantes durante o percurso que realizavam rumo ao interior do estado. Também era necessário provar que existia a possibilidade de se povoar a sesmaria concedida.
A ocupação de Piracicaba se inicia no final da década de 1710, pois a posição geográfica do vilarejo, localizado próximo ao Rio Piracicaba, era favorável para aqueles que estavam a caminho de Cuiabá a procura de ouro. Por sua localização, a cidade se tornou um dos principais pontos de partida para o interior do país e um dos mais importantes caminhos para abastecer Cuiabá com homens, gêneros alimentícios e materiais para o garimpo. Devido às dificuldades relacionadas ao transporte até os locais de extração do ouro, foi aberto um caminho que partia da Vila de Itu no ano de 1725. Este caminho teria sido aberto pelo ituano Felipe Cardoso, que havia recebido a primeira sesmaria para a ocupação oficial de Piracicaba, ressaltando que é muito provável, que ele tenha apenas ampliado e melhorado um caminho já existente, usado por índios e mineradores.
Com esse pequeno início, Piracicaba passou por um crescimento econômico e demográfico nas duas décadas seguintes e, após o início do período da decadência aurífera, entre 1740 e o início da segunda metade do século XVIII, ela já possuía seu destaque como porto de apoio e local de produção de alimentos para a colônia de Iguatemi, que tinha por objetivo ocupar áreas, expandi-las e garantir a posse dos territórios pela coroa portuguesa frente à Espanha.
Em 1775 ainda não se plantava cana e, portanto, não havia engenhos de açúcar e aguardente. A agricultura era voltada para a subsistência com o consumo de milho, arroz, feijão e algodão. Esse desenvolvimento inicial viria a ser incrementado pela intensificação da cultura de cana-de-açúcar e café no interior paulista. Com a introdução desses dois novos gêneros a população de Piracicaba cresceu ao mesmo tempo em que porções de terras eram desflorestadas para o plantio em um período cada vez mais curto. O crescimento do cultivo no Oeste Paulista acelerou-se no contexto da Revolução do Haiti – a grande revolução de escravizados que humilhou o orgulho europeu e o exército imperial francês – que ocorreu no final do século XVIII e início do XIX. Naquela época, o Haiti, representava 1/3 da produção mundial de açúcar e, com a quebra da produção, o preço da arroba de açúcar aumentou no cenário internacional, impulsionando a produção em outros países, como no Brasil. Dessa forma, é interessante pensar o desenvolvimento de Piracicaba como parte de um circuito internacional que envolvia a geopolítica atlântica e seu comércio triangular: escravizados da África, produção de café e açúcar no Brasil e importação para a Europa.
Como consequência de seu desenvolvimento, em 10 de agosto de 1822, Piracicaba é elevada de freguesia em vila e inicia esse novo período com sua própria Câmara Municipal e pelourinho. O regime de sesmarias vigorou somente até então. Nesse ponto é que podemos perceber a importância do rio Piracicaba como um fator de desenvolvimento da cidade, pois a força de suas correntezas era utilizada para inúmeros fins, seja para mover as engrenagens dos engenhos, monjolos e moinhos de cana e mesmo fubá, até para os lavadores e despolpadores de café, para levar os dejetos industriais, também para as destilarias de álcool ou aguardente e, como não podia deixar de ser, para as vias de comunicação.
Em 1822, Piracicaba estava imersa dentro da economia açucareira, já possuindo engenhos e fábricas de açúcar. A principal atividade econômica do município no período seria, portanto, a lavoura da cana, o que por sua vez, tornava a cidade um polo de importação de escravizados. A agricultura de subsistência também se fazia presente, sempre ao lado da cana.
Número de engenhos e população escrava nos respectivos anos em Piracicaba:
É possível destacar, através de dados enviados para a Câmara dos Vereadores, em 1825, que estatísticas demográficas apontavam para a existência de 2.669 escravizados para uma população de aproximadamente 8.000 pessoas. Desses, 2.076 eram africanos bantu recentemente traficados. Nessa época, a população de escravizados era composta em sua maioria por homens. A proporção era de aproximadamente de dois homens para cada mulher.
No recenseamento de 1828 consta que já existiam 1.089 fogos (como eram chamadas as residências no século XIX) e 8.311 indivíduos, entre brancos, pretos e mulatos. Todos os senhores de engenho eram brancos e o número de escravos chegava a 2.902. O município, nesse período, era ainda essencialmente rural, pois na zona urbana se encontravam menos de 2.000 pessoas. Nesse mesmo ano para a produção de 92.439 arrobas de açúcar era necessário o trabalho de 2.303 escravos que produziriam 600 kg cada um. Essa produção é considerada baixa para época e isso se justifica pelos métodos rotineiros e atrasados que eram ainda utilizados para a cultivação do solo. Devido à baixa produtividade, o piracicabano senhor de engenho não desfrutaria uma vida de luxo e abastança.
Esses dados precisam ser analisados com certa cautela devido às dificuldades na realização de censos. Os problemas com comunicação e transporte, além da presença de áreas de mata nativa e pequenas povoações criava sérias dificuldades para o levantamento de dados populacionais. Além disso, talvez alguns senhores de engenho não informavam o número real de escravizados que possuíam por conta de impostos que teriam que ser pagos.
O censo de 1836, que foi publicado em 1838, revela que a população já passava de 10.291 habitantes. A produção de cana-de-açúcar ultrapassava 115 mil arrobas. É possível observar que, em um período de algumas décadas, a cidade cresceu tanto demográfica como economicamente. Esse desenvolvimento estava intimamente ligado à produção de açúcar e à vinda de africanos escravizados para a realização do trabalho. A presença africana em Piracicaba foi, portanto, muito significativa, já que em 1828, por exemplo, os escravizados formavam mais de 40% da população. Sendo assim, é de extrema importância estudar sua (r)existência, destacando as contribuições que suas mãos deram ao desenvolvimento social e cultural de Piracicaba em seu momento de estabelecimento e fundação.
Rafael Gonzaga de Macedo é professor de história e curador.
Que privilégio ler este texto! Já estou ansioso para as próximas partes. Parabéns ao Diário do Engenho e ao Rafael, o conteúdo é magnífico!