Em um sábado de outubro de 2010 participei do projeto Diálogo Cinemático, na Clínica de Psicanálise de Piracicaba, a simpática ‘casinha verde’ na Prudente de Moraes, região central da cidade em que morei por 14 anos. O projeto era ideia do psicanalista Márcio Mariguela, como mais um ponto de transmissão do campo de saber inventado por Freud, em reforço à formação de psicanalistas na região. Coube a mim, na ocasião, conduzir a discussão sobre À Deriva, de Heitor Dhalia.
Minha escolha por esse filme se deveu à leitura de um texto que fazia menção a ele. Era assinado por Contardo Calligaris, o psicanalista italiano radicado no Brasil desde 1989. Contardo morreu nesta terça-feira (30), aos 72 anos, internado desde fevereiro para tratamento de um câncer. Seu desaparecimento me fez recordar o debate daquele filme em Piracicaba, há mais de dez anos, e pretende dimensionar minimamente a perda desse homem que me era uma referência no ambiente da psicanálise.
Sua inteligência e sensibilidade traçavam pontes sensíveis da teoria com a efetividade do nosso cotidiano universo sociocultural. Foi de um artigo seu para a Folha que apreendi seu olhar sobre À Deriva, cujo núcleo narrativo envolve a jovem Filipa (Laura Neiva) em seu processo de ingresso na vida adulta. Durante as férias da família em Búzios, a adolescente, ao lado do pai escritor (Vincent Cassel) e da mãe com tendência ao alcoolismo (Débora Bloch), precisa lidar com questões como sexualidade, confiança, maturidade e liberdade, e deixar a inocência juvenil para trás. O pano de fundo da trama é a crise conjugal dos pais, que leva à desarmonia familiar.
Ao eixo central – a transformação de Filipa de menina em mulher, desde a percepção paterna – cabe agregar o foco exato oferecido pelo texto de Contardo. “O caminho pelo qual uma menina se torna adulta é quase uma alquimia: existe um fio tênue, mas decisivo, que separa um desejo paterno incestuoso de um olhar do pai que confira à menina a certeza de que ela é desejável como mulher.” O conhecimento analítico em vivo diálogo com a expressão artística, nomeando processos de nossa psique que a arte, em sua manifesta intuição, dá a representar por vias próprias.
Para além do rebatimento na elaboração do debate de À Deriva, o artigo de Contardo me levou a identificar, feito um flash, do momento exato em que eu mesmo vivera essa “autorização paterna” na passagem de minha filha a tal condição desejante como mulher. Numa festa, me deparei com a postura da mulher que ali despertava, sensual ao lado do namorado num sofá, atentos à apresentação musical. Apanhei o instante. Em zoom, fotografei seus traços, capturando, e ao mesmo tempo comemorando, a fugacidade daquela passagem…
Contardo apontou a proa de sua formação para um tal leque de diversidade e bebendo em fontes realmente dignas de nota. Iniciou pela epistemologia, na Universidade de Genebra, Suíça, na qual Jean Piaget dava palestras e em que depois ele mesmo veio a ensinar teoria literária. No começo, a psicanálise lhe chegou como tratamento. Naqueles anos, passava alguns dias por semana em Paris, fazendo análise. Perseguia a cura para suas angústias e uma gastrite crônica que o acompanhava desde a adolescência. As angústias se amenizaram e a gastrite sumiu. “Por isso mesmo a psicanálise começou a me interessar seriamente.”
Morou por 15 anos na França, e foi lá que, em 1974, decidiu se tornar psicanalista. Frequentou o seminário de Jacques Lacan (“a missa semanal parisiense”), cursos e grupos de estudo da École Freudienne de Paris, dirigida por Lacan e onde seu analista Serge Leclaire lecionava, além de ter aulas com Roland Barthes e Michel Foucault. Doutor em psicologia clínica, deu aula na Universidade de Paris e foi professor convidado da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e na The New School, em Nova York (ambas nos EUA).
Seu primeiro contato com o Brasil foi em 1986. Veio divulgar seu livro Hipótese sobre o Fantasma na Cura Psicanalítica – hoje fora de catálogo, só encontrado em sebos e a preço de ouro. De lá para cá, no rastro deixado desde a popa de seu percurso, é apreciável a diversidade de suas colaborações. Contardo se fez presente em diferentes canais midiáticos, com participação sempre rubricada por uma prosa clara e envolvente. Colunista da Folha desde 1999, para lá escreveu cerca de mil artigos. Publicou 13 livros, entre os quais Coisa de Menina?, com sua companheira e também psicanalista Maria Homem, e dois de ficção, O Conto do Amor (2008) e A Mulher de Vermelho e Branco (2011). Foi autor da peça de teatro O Homem da Tarja Preta(2009), e criador e roteirista da série Psi, exibida pela HBO a partir de 2014. Marcou influência ainda na televisão e no rádio com incontáveis entrevistas.
Com trajetória dessa ordem, em contribuições que em muito transbordaram o setting analítico, Contardo estava internado desde fevereiro no Hospital Albert Einstein, aqui em São Paulo. A morte foi confirmada pelo filho, o diretor de cinema Max Calligaris, por meio de uma postagem no Instagram, na qual dizia que o pai, diante da proximidade da morte teria dito: “Espero estar à altura”.
Heitor Amílcar é psicanalista membro do Inst. Vox de Pesquisa em Psicanálise(SP).
Caro Heitor, talvez meu comentário não tenha valor pela imparcialidade, afinal, o conheço há muito tempo…, mas sempre que leio um texto seu, é como se estivesse ouvindo sua voz e não lendo texto. É uma bela homenagem a Contardo Calligaris, enriquecida com sua sensibilidade de unir a história de Filipa à de Olívia. Lindas fotos de Piracicaba…
Grato por tua amável manifestação, Naoki. As belas fotos são um dos patrimônios do Diário do Engenho, esse canal brilhantemente conduzido pelo Alexandre Bragion.
Bonito, Heitor. A morte dele me fez lembrar da ideia que ele tanto repisou, a de que o objetivo não é a felicidade mas estar intensamente vivo. É tão perfeita para os tempos que vivemos que vi replicada das mais diferentes formas, em várias homenagens. Pelo jeito ele estava à altura desde muito.
É isso, Inês. A ‘vida interessante’ que ele perseguiu, e construiu, bem serve como referência, ainda mais nesses tempos nebulosos que atravessamos.
Bonito, Heitor. A morte dele me fez lembrar da ideia que ele tanto repisou, a de que o objetivo não é a felicidade mas estar intensamente vivo. Tão perfeita para os tempos que vivemos que vi replicada das mais diferentes formas em várias homenagens. Pelo jeito, ele esteve à altura desde muito.
Heitor, além da homenagem tão cheia de afetos e memórias (e talvez por isso mesmo!), vc me fez lembrar da reação de meu pai ao conhecer meu primeiro namorado. Gostoso quando as leituras abrem portas e janelas dentro da gente, né? Beijo
As leituras, assim como as próprias pessoas, bem se prestam exatamente a isso que vc diz: abrir portas e janelas dentro da gente. Obrigado por sua bela reação, Flávia!
Belo texto, em que sua escrita mostra, marca e mantém a presença de Contardo Calligaris entre nós.
É incrível como a morte, com sua face de luz, nos faz rememorar momentos interessantes e importantes.
Relembrei do quanto aprendi com as falas de Calligaris, com seus textos e com as indicações de leituras quando participei de um grupo de estudos dirigido por ele. Preciosidades que ficam.
Obrigado pela sua contribuição, Regina! A morte é das maiores pedagogas que conheço. E nos faz valorizar ainda mais as preciosidades que ‘vidas interessantes’, como a de Calligaris, entornam pelo caminho ao usufruto dos demais.