Não é preciso combater nem derrubar esse tirano. Ele se destrói sozinho, se o país não consentir com sua servidão. Nem é preciso tirar-lhe algo, mas só não lhe dar nada. O país não precisa esforçar-se para fazer algo em seu próprio benefício, basta que não faça nada contra si mesmo. São, por conseguinte, os próprios povos que se deixam, ou melhor, que se fazem maltratar, pois seriam livres se parassem de servir. É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor, o procura.
Étienne de la Boétie. Discurso da Servidão Voluntária
O espectro que parece rondar e definir a dinâmica do contemporâneo vai assumindo a tenebrosa face do neofascismo. Longe de um devir tomado por múltiplas possibilidades e promissores encontros, o futuro aparece muito mais como distopia, fundado na transparência do mal. Neste contexto, despontam, à luz do sol e sem nenhum constrangimento, posturas de aberto preconceito e racismo, expressões do machismo, sexismo e homofobias, reações de xenofobia e demofobia. Na ausência de um julgamento ético mais coeso e coerente, comprometido com a justiça e o direito, parece reinar a banalidade de ações a produzirem e perpetuarem o mal em sua radicalidade.
Em uma clara tentativa de se decretar a morte de qualquer perspectiva de solidariedade, sob o auspício dos setores corporativos, vinculados às empresas e ao mundo financeiro, o neofascismo que se anuncia tem como valores absolutos, tão somente, o capital e o mercado. Consolidando este estreito horizonte, não haverá, definitivamente, mais lugar para a democracia, nem para a noção de cidadania, nem de ética, nem mesmo de política e muito menos de direitos fundamentais, a definirem o humano. Com ausência de contraposições no plano macro, no campo político e econômico, o capitalismo, em sua contemporaneidade neofascista, não mais precisa nutrir falsas utopias, pode agora revelar sua face brutal e perversamente excludente: as benesses do modelo produtivo são destinadas apenas para um pequeníssimo grupo.
Em um movimento que busca anular a dimensão da alteridade, o outro (quem quer que seja ele) tem sido constantemente identificado como o inimigo. É a identidade contra o outro, não a partir do outro ou com o outro. Nesse cenário ecoa e ganha força um crescente sentimento anti povo, sedimentado em concepções não democráticas e segregacionistas. Em uma perversa pedagogia de exclusão, o pobre deve ser abandonado a sua própria sorte. Em uma ideológica e limitada compreensão de que a pobreza é consequência exclusiva de deméritos e vícios. Sendo a riqueza, por seu lado, resultante de méritos e virtudes. Na ridícula ideologia meritocrática, a desigual e injusta realidade social é simplesmente abstraída, como se cada sujeito tivesse uma existência, uma história independente de todas as mazelas e vicissitudes sociais, livre e aberta para quaisquer escolhas.
A elite econômica, como aves de rapina – compondo o que talvez possa ser designado como “ralés do alto” –, avança e se apossa também do poder político, de maneira a reduzir a democracia a um mero jogo de manipulação e conveniências. É uma democracia vazia, desprovida de cidadãos, protagonistas políticos e de direitos. A democracia e suas instituições passam a ser dispensáveis, quando não se revelam mais adequadas à manutenção de uma ordem excludente. Talvez seja a expressão de uma democracia meramente funcional, que pode a qualquer momento e pretexto ser facilmente dissolvia, configurando uma realidade na qual não há garantias, não há solidez, tudo pode, abruptamente, ser desmanchado no ar.
Não deixa de ser sugestivo se deter um pouco mais e observar, mesmo que de maneira incipiente, o perfil do grupo que se alto proclama como elite – “as ralés do alto”, em uma expressão livre e não conceitual. “Ralés do alto”, apesar da imprecisão conceitual que o termo evoca, justamente por estar muito distante de tudo que a palavra elite possa contemplar. Essa pseudo elite, que não passa de mixórdia, a abraçar a boçalidade como horizonte e dinamizar uma existência opaca e vazia, desprovida de dimensões mais genuínas e interessantes. Na superficialidade de uma existência que parece se esgotar na perspectiva de uma vida centrada em consumo e fruição, as “ralés do alto” carecem, sobretudo, de humanidade, ao se revelarem incapazes de um mínimo gesto de solidariedade e compaixão, ao mesmo tempo em que promovem e disseminam brutal violência, espalhando um visceral ódio a tudo e todos que venham a se apresentar como algum tipo de ameaça a seu estilo e vida.
É possível identificar representações e expressões desse neofascismo em diversas sociedades, a refletirem talvez o esgotamento do modelo capitalista. Mas em um movimento de acirramento de todas essas questões, o cenário brasileiro desvela-se emblemático. No Brasil o neofascismo talvez apareça com toda sua sordidez, sem máscaras ideológicas, explicitado, diabolicamente, no projeto de uma ordem social pautada na exclusão, na opressão e na exploração do outro, do pobre. Em tal lógica, as instituições, que deveriam despontar como balizas de uma ordem democrática, avançam, como meros aparelhos ideológicos, em defesa da destruição do incipiente Estado de Direito. Judiciário, Legislativo e, fundamentalmente, o poder Executivo se curvam, em um movimento de total e irrestrita subserviência, ao grande capital. O Estado abre mão de sua soberania, viola princípios democráticos, reforma direitos constitucionais consolidados, trata com ignomínia os cidadãos, no limite, rompe com o pacto social.
Na dinâmica de explicitação do poder total do capital, a devastar a noção de Estado Democrático de Direito, destruindo o frágil pacto social, as empresas capitalistas de comunicação também assumem protagonismo central. Os meios de comunicação de massa, sob o domínio de poderosos grupos econômicos, articulam e implementam um meticuloso processo de manipulação, alienação e construção ideológica. A dimensão da mentira, a inversão e o enviesamento da realidade desdobram-se da própria definição da pauta jornalística e da estética de apresentação e narrativa das informações. A ausência de um contexto mais amplo e global, a exposição solta de eventos e fatos, a difusão livre de opiniões obtusas, comprometidas com determinados setores da sociedade, porém apresentadas como análises criteriosas e fundamentadas, compõem a perspectiva da alienação. O aspecto ideológico é desdobramento, justamente, da concepção de verdade e realidade que é ardilosamente divulgada. Por trás das informações e opiniões veiculadas, há a defesa de um modelo de sociedade. Para além de qualquer compromisso com a transparência o que se vislumbra, em última instância, é a manutenção, perpetuação do próprio establishment.
Diante de um cenário que pode ser desalentador, a questão fundamental que se coloca é justamente sobre os limites de um modelo de sociedade estruturalmente excludente, fechado a qualquer perspectiva de solidariedade. Onde dormirão os pobres, mediante o fortalecimento e expansão de um capitalismo neofacista? Talvez o grande desafio do contemporâneo seja vislumbrar caminhos que revigorem projetos alternativos de sociedade, pautados, fundamentalmente, na democracia e no direito. Desvela-se então como imperativo, como tarefa histórica imprescindível, perspectivar uma sociedade aberta, que caiba todos, de maneira a suplantar todas as formas de opressão e exploração, fornecendo as condições estruturais básicas para que a vida humana – toda a vida – aflore, alcançando e realizando todas as suas potencialidades. Trata-se de pensar a sociabilidade humana com bases sustentáveis e possíveis.
É interessante considerar que a perpetuação de estruturas socioeconômicas promotoras de injustiças, iniquidades, exclusão, opressão e exploração talvez decorram mais da omissão e conivência das massas do que da força e violência dos opressores. Isso para dizer que todo sistema de opressão e exploração deve sua sobrevivência também à apatia e acomodação das massas. É óbvio que os aparatos ideológicos e coercitivos agem com eficiência. A violência promovida pelas “ralés do alto” é contínua e sistemática, visando desarticular todas as formas de resistência e luta. Mas, quando consciente de seu papel histórico, a população organizada e mobilizada pode assumir um protagonismo irresistível e transformador. Para a aurora de um novo tempo, marcado pelo primado da solidariedade, da justiça e do direito – tendo como eixo central a dignidade inalienável de cada sujeito – torna-se imprescindível que a voz do povo ecoe, tomando as ruas, a partir e um vasto movimento a desencadear um radical processo de insurgência. A radicalidade ganha o seu viés humanizador ao fomentar brados, gritos, vozes contra a barbárie, contra as forças predatórias de um capital neofascista, que quer se avolumar acima do que é essencialmente humano.
Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia pela Universidade Católica de Braga/Portugal e professor no Instituto Federal (IFSP), campus Piracicaba.
Grande Adelino! Texto claríssimo! Corajoso!
Obrigada!!!!
Prezada Miriam Foresti,
Estimo que esteja bem! Eu é quem agradeço pela leitura atenta, pelo comentário e oportunidade de interlocução. Talvez a reflexão ainda seja um caminho de resistência.
Com cordial amizade,
As “ralés do alto” dominam com a conivência daquelas que, justamente por sua conivência, podem ser chamadas simplesmente de “ralés”. Assim, a questão que está colocada tem um fundo nietzscheziano. Entretanto tudo isso não passa de uma ilusão, a qual se sustenta, paradoxalmente, autonomamente, segundo suas próprias sustentações: o poder pertence ao povo e é exercido por representação, portanto, cabe ao povo tomar consciência de si e de seu poder. A questão então vai tomar contornos marxistas e como diz Guy Debord: “O sujeito da história só pode ser o ser vivo produzindo a si mesmo, tornando-se mestre e possuidor do seu mundo que é a história, e existindo como consciência de seu jogo (DEBORD,1997,p.50)”.
Mas é mentira que, num sistema democrático, o poder pertence ao povo: só lhe pertence enquanto simulação. Então, nem a categoria de verdade, nem a categoria de mentira: ao povo pertence a categoria da alienação.
E aí parece que estamos de novo com Étienne. A democracia será sempre apenas procedimental, aparato de dominação e apaziguamento das massas conquanto as massas sejam essa massa irracional e acrítica de indivíduos.
O que acha, mestre Adelino?
Eu acho que a tarefa mais urgente da filosofia hoje é a de repensar o estatuto do erro e da alienação, seguindo a pista deixada por Lebrun.
Olá caríssimo Giovanni, é bom vê-lo nesse espaço de reflexão e debate de ideias, sempre de maneira democrática, crítica e aberta.
Penso que você coloca questões interessantes e coerentes. Tem lido boa filosofia.
Para além de qualquer retórica, a questão fundamental permanece: Onde dormirão os pobres? Essa indagação feita por Gustavo Gutierrez permanece atual e carente de uma resposta.
Com amizade, Adelino
Grande Adelino!
Quanta lucidez sobre o momento atual!
A canalhice ladra em certo jornaleco, mas seu pensamento é indestrutivo; vamos em frente!
Valdir Prati
Olá Valdir,
Estimo que esteja bem!
Precisamos construir novos espaços de interlocução, alcançando outras consciências. Romper o cerco está cada vez mais difícil. Grato pelo comentário e pela força. Vamos juntos. Abraços.
No seu texto o senhor disse, no meu entender, que temos que dar um basta na nossa preguiça crônica, que temos que abrir nossos olhos e visualizar que somos nos damos força a “ralé do alto”. Na sua opinião, qual a melhor maneira de fazermos isso? Me desculpe se não tiver entendido sua opinião no texto.
Humildemente seu aluno.