Rua da Boa Morte. Rua da Boa Vida.

Rua da Boa Morte. Rua da Boa Vida.

 

Rua da Boa Morte. Rua da velha vida. Rua cheia de fé e mistério intercalando descida e subida. “Lá vem a procissão – Vai subir a Boa Morte?” Rua da boa sorte, do dia alcançado e conversado na calçada calma em frente ao portão dos sonhos da alma das gentes – alma avarandada, alma-rancho a vicejar. “É procissão do Senhor Morto? – Ah, então sobe a Boa Morte!”. Imaginação cheia de cânticos, de ventos, de passos alados e assombração. “Já dá para ver, a procissão vem vindo!” – mãos carregando velas acesas balançando chamas ao respirar da brisa-noturna-brisa. A criançada, na Boa Morte, por mais que as mães ralhassem, tentava no sem-fim das tardes a sorte de achar um túnel – imaginário ou não – que supostamente ligava o pátio do Colégio Assunção à Igreja do Sagrado Coração. “Chegou a procissão! Quem vai seguir?” Velho túnel Dom Sebastião dos tempos de meninice! Bom mesmo era procurar o túnel secreto, quer ele existisse ou não existisse.

Rua das boas mortes. Onde hoje é a livraria mágica do Zé Portes, ficava no antes a casa de meu avô Pedro. Casa mística e mítica – de fundo sem fundo até o fim. Suas janelas de madeira pintadas de branco olhavam a Boa Morte com olhos imensos de engolir serpente. Seu pé direito alto batia no céu cinza de forro almoçado pelos cupins aos grandes bocados. Pelo assoalho do tempo, coberto de cera polida a escovão, enxergávamos – entre festas, frestas e estalos de madeiras – as colinas verdes de outras terras, de outros mundos, de outros países que se enfileiravam na fileira comprida do fio de entrada do corredor da casa de meu avô. Na sala primeira, pendia da parede um quadro verde-verde de marré-marré de si, onde se via a imagem de um Jesus verde (verde como os marcianos dos gibis) apontando com o dedo para o próprio coração, vermelho e vivo-sangue. Que medo. Já não bastasse a casa do meu avô ficar numa rua que se chamava Boa Morte, ainda tínhamos lá um Jesus verde de coração em fogo. “Chegou a procissão, Seu Pedro!”

Ao lado da casa de meu avô fincava-se serena e eterna a imensa lojinha do Tola. Tudo o que havia no mundo tinha uma exemplar para ser vendido ali. Rinocerontes, cobras, elefantes, soldados de chumbo, sorvetes, tênis, folhas de almaço, envelopes de carta, prefeitos, paçocas, canetas, vereadores, sonhos, lembranças, desejos. O armazém do Tola não era apenas um armazém – era um universo paralelo habitado por pedidos insólitos, por secos e molhados encarnados em objetos dependurados em longos cordões por sobre o balcão de estrelas. Atrás dele, mora para todo o sempre a imagem do velho Tola – a quem a criançada mais malandra infernava, gritando a plenos pulmões-de-bicicleta: “tem lápis, Tola? – tem lápis?”. O homem ficava uma onça! Rua da Boa Morte, Rua da boa vida, rua da boa sorte. “Chegou a procissão, quem vai seguir? Seu Pedro, vai seguir a procissão?”

Na mesma quadra da Boa Morte, diante do Tola e do meu Avô, a Igreja do Assunção e sua pracinha labiríntica completavam o cenário viajante-imaginário no espaço-tempo da rua. Nave louca – temporal e especial. “Não passem pela pracinha que ela é assombrada – cruz-credo.” Nada, nada. Não havia nada. Havia apenas naquela pracinha o não sei quê de ar fantástico, nebuloso, ar de superstição à meia-noite. Cruzá-la, sozinho, era – porém – um privilégio primeiro e primoroso de uma aventura em suspeito perigo. “Cruz-credo!”. Para variar, éramos proibidos de transitar por ali também. Apesar de que, em verdade, sobravam em nós mais temores que perigos. Mas. O “é melhor obedecer” falava mais alto. Afinal, quem se arriscava ou arriscaria a cruzar o espectro sinistro da praça da qual, se diziam às crianças, fora construída em cima de um cemitério. “A procissão já foi, corre, corre, Seu Pedro”.

Rua da Boa Morte. Rua da vida. Rua de padarias, dentre tantas, nunca mais esquecidas pelo coração dos que, no pão, compravam diários-constantes de esperança e a ser comida e vivida. Já vai no tempo-pão, por exemplo, a padaria do Adão – na esquina da Igreja dos Frades – a padaria da Maura, a padaria Do Lar. Algumas ainda vivem em novo funcionamento, outras apenas funcionam na boa memória que se cria ao se lembrar. Outras moram nas nuvens, portas de aço abertas, cheiros de lenha, manteiga e leite. Rua dos supermercados, dos mini-mercados cheios de super-encontros vividos no meio da tarde por aqueles que fugiam das ruas mais movimentadas do centro. “Tem pão quente, Seu Pedro! Vai levar?” Manda o menino buscar que o café está pronto.

Rua da Boa Morte. Rua da Boa Vida. Lembrança em presente sulcada no coração da cidade.  “Já foi, já foi. A procissão agora é ida, Seu Pedro. Já não dá mais tempo de acompanhar!” Rua da Morte, Rua da Velha Vida. “Tem procissão, hoje, Seu Pedro?”

 

(Crônica publicada em “A Tribuna Piracicabana”, em 17 de abril de 2018).


 

 

 

 

 

Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho. 

(Fotografia da Rua da Boa Morte capturada no site: http://ipplap.com.br/site/projetos).

2 thoughts on “Rua da Boa Morte. Rua da Boa Vida.

  1. Morei minha infância na rua Boa Morte, só lindas lembranças, vizinho de casa na esquina da Ipiranga,a única e maravilhosa barbearia do Gordo,onde trabalhavam Ditinho e Zezinho,o maior passista da escola de samba Leões da Paulicéia,o único salão de Piracicaba que atendia negros
    Vivia brincando na barbearia, está gravado até hoje o perfume da água velva em minha memória
    Sem falar do bonde ,com o motoneiro Chapecó,que me dava carona até a Estação da Paulista , para passear
    Muita, mas muita SAUDADES

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