Reminiscências do Matriarcado na Rainha de Ingomai

Reminiscências do Matriarcado na Rainha de Ingomai

Em Manica, Chimoio, no coração de Moçambique, há dinâmicas culturais que persistem e resistem ao devastador processo de homogeneização característico da globalização. São aspectos peculiares de um modo específico de viver, demarcando a cadência das relações e o sentido mais profundo da própria existência. No território de Manica é possível se deparar com uma cosmoconcepção de vida que é quase incompreensível para a mentalidade ocidental e colonizada. Formas genuínas de viver, que desconstroem os limites da colonialidade.

A partir da proposta e do convite do historiador Prof. Tomé Pedro Morais, da Universidade Púnguè, deslocamo-nos do centro da cidade de Chimoio para o Distrito de Gôndola, na localidade de Ingomai, para conhecer e conversar com uma senhora que é reconhecida como uma Rainha, evidenciando uma interessante memória de matrilinearidade, em divergência com a tradição patriarcal característica da região de Manica.

Na Providência de Manica, no Distrito de Gôndola, em Mandhore, na localidade de Ingomai, rompendo com o contexto cultural mais amplo que é definido pela patrilinearidade, há a presença do poder feminino de uma Rainha. A Rainha de Ingomai projeta-se como a grande mãe, destacando-se como a liderança local, sendo o centro de todas as decisões que afetam aquela comunidade.

O termo rainha, em uma mentalidade colonizada, pode logo remeter a um lugar potestade e distinção associados ao domínio soberano sobre seus súditos. No entanto, a Rainha de Ingomai aparece desprovida de palácio, pompas e coroa. Desconstruindo concepções próprias do Ocidente, a Rainha de Ingomai representa uma autoridade moral, fincada em uma tradição de matrilinearidade, constituindo-se como a grande matriarca, a referência, que aconselha, cuida e direciona a vida e as relações no interior da comunidade.

Como grande mãe, no cotidiano das relações de poder, a Rainha de Ingomai é uma avó amorosa, que se senta em sua esteira, disposta no pátio central onde reside a comunidade familiar. Em Gôndola, na localidade de Ingomai, a Rainha é acessível e receptiva para acolher os visitantes, mesmo aqueles que chegam de maneira espontânea, sem nenhum agendamento, como foi o nosso caso. Marcante a alegria da Rainha ao saber que aqueles pesquisadores eram das distantes terras do Brasil.

Interessante que há uma comunicação universal por meio da ritualidade simbólica contida nos gestos. Ao saber que éramos brasileiros, a Rainha de Ingomai, que não fala o português, a língua do colonizador, apenas a língua chiutè, de matriz bantu, levantou-se e, dirigindo-se a cada um dos visitantes, pegou em nossas mãos, colocando-as entre as suas, em um sinal de deferência, mas também de acolhimento e bênção. Aquele gesto, pleno em significado simbólico, manifestou para nós muita dignidade, humildade, desprendimento e profunda sabedoria.

Antes de irmos embora, a Rainha dirigiu-se até a plantação de milho e presenteou a cada um dos visitantes do Brasil com uma espiga. O milho é o principal alimento daquela comunidade, sustento para o corpo e também alimento com simbologia mística. O gesto da Rainha não deixou de manifestar seu respeito ao grupo de visitantes. A espiga de milho representa ainda, na sabedoria ancestral de Manica, a força vital. Em nossas bagagens de volta ao Brasil, trouxemos a espiga de milho, junto com o propósito de aprofundar o conhecimento sobre a Rainha de Ingomai. Este contato descortina-se como uma das potencialidades de pesquisa contempladas no projeto Afro-IF Articulando Saberes Neabi-Moçambique, do Instituto Federal de São Paulo. Ali, estaremos conectados a uma mística, a um profundo e instigante conhecimento, a uma perspectiva de ancestralidade que pretendemos alcançar, o que só será possível com uma atitude de respeito e admiração.

 


Adelino Francisco de Oliveira é doutor em Filosofia, mestre em Ciências da Religião e professor no Instituto Federal de São Paulo campus Piracicaba

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