Ensaio Mínimo sobre o Amor e a Paixão

Ensaio Mínimo sobre o Amor e a Paixão

Noites de paixão. A sala, o chão, a alma não governada. Memórias de roupas poucas, de roucas vozes, a sala não governada. A alma no chão. Roupas da paixão, memórias roucas, poucas vozes. Se fosse canção seria primavera. Era? Se fosse primavera seria ilusão da sensação que é mesmo (e só e tanto e tudo) apenas (imensamente) imaginação (paixão doente). Ah! Fosse noite e seria memória – sentida, criada, rediviva. Era? Fosse minha e seria lamento. Foi? Fosse divina e seria advento, criação da vida (no tempo) nascida pobre entre os seus – e que uns (em fervor) chamam de Deus, outros (no ardor) chamam de amor (Deus dos ateus).

Por isso, na ilusão, não confunda amor e paixão – apesar de imbricados que são em fatais conjugações. Amor é visto feito nesga de terra – pequenino, mas definitivo. Amor é o que erra, tropeça e cai sem lenitivo. Amor feito palavra dita, bonita que só. Palavra aflita, que berra, é amor. O cantar trovador dos que declamam sob qualquer condição, sob qualquer suspeita – por outro lado – é paixão. Baita confusão! Talvez tudo seja a mesma que a outra coisa, então. Só que diferente. Mais íntimo e sério (o amor), mais divertida e sem mistério (a paixão). Ou não? Bah! Qual deles seria a galinha e o outro o ovo? Tentemos de novo – porque não vemos tão fácil a diferença. Filosofemos.

Na esteira do amor, o céu do Imperador da Língua Portuguesa – como dele disse Pessoa – surge Padre Vieira. Em definição que carrega um pouco de pudor, mas ecoa certeza, o Padre (logo um padre?) resolve e enfileira sem tensão uma trina concepção sobre o que é o amor ou não – e sua natureza. Diz ele. Quem ama para ser amado, não ama: faz negócio, mercado. Quem ama porque alguém o ama, não ama, retribui (e desse amor o amor verdadeiro não se constitui). Mais amou o Cristo ao traidor e a ele devotou o que Vieira chamou de amor, do que aos demais discípulos. Porque, como nos ensina o Padre, o amor de verdade não espera correspondência ou retribuição. Quem ama devota em silêncio – o resto é apenas (intensa, imensa e explosivamente) paixão.

Se Vieira tiver razão, o amor de verdade é raridade. Já a paixão transita no vento, tem pólen, semente e espera fecundação. O amor é pressentimento, a paixão vive prenha de desilusão. Amor rima com dor. Paixão, com compulsão. Por isso, as roupas do amor pelo chão da sala são paixão. As dores da paixão do Cristo de Vieira (e tantos) é amor. Porque amor é a coisa mais triste quando se desfaz – cantou o poeta em lírica comunhão – a paixão, não. A paixão é doente, mas se cura. O amor é infinito, e às vezes morre. O amor é torre. A paixão, um porre!

“Se se morre de amor? Não se morre” – disse em letras frias Gonçalves Dias – “quando é fascinação que nos surpreende, de ruidoso sarau entre os festejos” (ou seja, paixão!). Se se morre de amor?  – retomou o poeta em nova cor – se for o amor mais do que cortejos, se for entrega feita de” imensidade,” se for “conhecer o prazer e a desventura”, morrer é um risco que se corre e – concluiu ele – “desse amor se morre”.

Cuidado – no entanto – com qualquer e todo canto feito de encantos. Afinal, não há soluções aparentes entre o amor e a paixão, nem conciliações, nem facilidades – que essas, quando em muito, só advêm com a idade. Porque não há armadura para as flechas de Eros, nem alegrias nas manhãs de sábado sem paixão. Que entre o amanhecer e o poente, o sol reverbera – esfera quente – sobre as eras feitas no tempo de sentimentos duros e sentimentos vãos. Força maior, desejo-são, no fundo talvez não caiba separar amor e paixão (mesmo que seja apenas pelo puro sabor da definição). Porque, por fim, aceitemos (todos sabem): as roupas pelo chão são amor, ora! E retê-las no para sempre da memória da ilusão, também.


Alê Bragion é editor do Diário do Engenho. 

 

 

(Foto: quadro “Flamenco” – Rocco Caputo).

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