Qual a dimensão da crise que vivemos hoje no Brasil? Tenho defendido que é uma profunda crise civilizacional, pois alcança as bases da sociedade em seu conjunto. O que tem sido colocado em questão é justamente a pertinência e validade dos princípios que fundamentam a civilização cristã. Parcela significativa da sociedade tem se questionado se a ética, a justiça e a solidariedade, por exemplo, ainda são princípios válidos para sustentar e estruturar a vida. O país vive no limiar da barbárie.
O aspecto que mais evidencia a profundidade da crise aparece na maneira como a pandemia tem sido enfrentada no país. A ausência de planejamento para a aquisição de vacinas, de maneira a promover a imunização, deixou a população totalmente vulnerável, desprotegida, à mercê do vírus letal. O país sofre e sangra, com a morte de mais de 260 mil de seus filhos.
Apesar do número elevado de mortes e de todo um prognóstico que aponta para um acirramento e agravamento da pandemia no país, há um movimento que tem procura construir uma narrativa negacionista, afirmando que a pandemia não passa de mera ficção, por contemplar intenções no campo das disputas políticas. Há uma forte rede de produção de fake news e pós-verdades, que busca desconstruir a letalidade da Covid-19 e levantar dúvidas sobre a da utilização de máscaras e do isolamento social como instrumentos eficazes de prevenção ao vírus.
As narrativas que se contrapõem ao fato da dura e dramática realidade da pandemia acabaram por gerar um ambiente cultural não solidário, de aberta desconfiança e deflagrado conflito. Emerge todo um cenário no qual a morte do outro passou a ser percebida como realidade banalizada, como se não causasse nenhum impacto à vida coletiva. A profunda indiferença e insensibilidade em relação ao sofrimento do outro demarcam, precisamente, a rejeição aos conceitos de ética, justiça e solidariedade, pilares da civilização ocidental. O caos no campo da saúde pública acabou por desvelar uma profunda crise ética e civilizacional.
No quadro geral da crise sistêmica por que passa o país é importante dar especial atenção para a área da política econômica, na qual prevalece a visão do ultraliberalismo, com a defesa irrestrita e até irracional do livre mercado. A ideia simplista de que cabe ao mercado regular a dinâmica econômica, em um Estado com uma mínima atuação, acaba por deixar os mais pobres em uma situação de total abandono e vulnerabilidade, aprofundando ainda mais a realidade de profunda desigualdade social no país.
No momento mais dramático e sombrio da pandemia no Brasil, agravado pela situação alarmante do desemprego e do trabalho precarizado, somando um vasto contingente de pessoas sem as garantias sociais básicas, o governo federal resiste perversamente para conceder um auxílio emergencial mínimo, que seja capaz de livrar as famílias da pobreza extrema e da fome. Sem vacinas para imunização e sem um auxílio financeiro digno, a população brasileira não encontra amparo nem no Estado nem no mercado.
Com o surgimento de novas cepas do Novo Coronavírus, consequência de processos biológicos de mutação, o país pode se tornar uma ameaça para a humanidade e para o próprio planeta. Já não há mais espaço para negacionismos, nem imobilismos irresponsáveis. É urgente que os brasileiros sejam protegidos do vírus, com a vacinação em massa, e amparados financeiramente, com uma gestão econômica que coloque as pessoas em primeiro plano. O grande desafio será reinventar o Brasil, resgatando o primado da ética, da justiça e da solidariedade.
Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal, campus Piracicaba. Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião.