Faz um ano.
Catedral de Santo Antônio. Eu estava lá, para meditar e orar, quando veio a notícia que tudo fecharia devido às restrições sanitárias impostas para conter o avanço de algo que não se via, mas que era considerado letal. Alguns diziam que não eram coveiros, outros negavam tal existência de uma “gripe chinesa”, outros atribuíram a obra do tinhoso – e alguns, achavam que era uma arma para instaurar a Novus Ordo Seculorum.
Na semana seguinte, Semana Santa. Junto com amigos “corajosos”, enfrentamos o que não víamos para cantar e tocar nesses dias em que as “trevas” fizeram o mundo parar. No Vaticano, um homem solitário e com o peso da Fé de todos, católicos ou não, atravessa a Piazza San Pietro e deixa o mundo todo pasmo, com nó na garganta. Quem viu a cena no momento que aconteceu bem sabe o que digo. Canto Gregoriano ao fundo, orações, petições, enfim, a música começa a envolver as pessoas num aura de esperança na superação do momento. Os italianos, poucas semanas antes, viram caminhões em fila a levar corpos para crematórios de cidades vizinhas – porque em Bérgamo e em outras cidades italianas não havia mais covas para os mortos. Aqui, não seria diferente: além das covas, faltariam ar, insumos…
Faço essa breve regressão para introduzir uma questão: a força da música para a superar as agruras do atual momento, que veio com mais força após um ano e com mais vidas ceifadas que nas primeiras grandes guerras mundiais do milênio passado. Não há mente que fique sã se não colocar os ouvidos para trabalhar (ou o corpo todo, e aí penso em quem tem a prática de algum instrumento musical ou simplesmente gosta de cantar) para espantar seus males.
A Música tem esse papel terapêutico há séculos. Recentemente, pesquisas na USP correlacionaram a exposição de parturientes e outros casos mais sérios com o Canto Gregoriano e, não é de assustar, houve melhora significativa da recuperação desses. Por outro lado, o velho ditado “diga-me a qual é a música de um país, que lhe digo como é governado” – cujas ressonâncias vêm desde Platão, Aristóteles, e Confúcio – mostram como estaremos no sentido coletivo caso não escolhamos repertório mais inspirador e que proporcione elevação da alma, busca por valores mais nobres e não valores materialistas, necroeconômicos ou necropolíticos.
A Arte das Musas, como é definida a música, faz parte do Quadrivium. Esse conjunto faz parte das Sete Artes Liberais – e esse bloco se destina à observação da Natureza criada por Aquele “cujo (Grande) Arquiteto e Construtor é o próprio Deus” (Hebreus 11, 10). O “Grande” é adendo meu, mas creio que quem ler esse meu texto deve concordar comigo, pois “quis ut Deus” (quem é maior que Deus?). A música reflete a harmonia com a qual o Grande Arquiteto do Universo concebeu sua Criação – e cuja criatura última, o ser humano, teve a responsabilidade de conduzir para caminhos melhores. Só que não…
Querendo ou não refletir a Criação, a humanidade precisa da música para manter a cabeça no lugar, como um highlander que não pode perder a cabeça para se manter vivo. Os italianos assim o disseram, naquele momento triste – e nós, brasileiros, também! Cantemos músicas, religiosas ou não, sacras ou profanas, mas sempre com letras que nos coloquem com os corações para o alto, com arranjos que nos permitam desfrutar da mais pura sensação de êxtase. Por que digo isso? Porque as estruturas musicais, seus componentes (como o ritmo, a melodia, a harmonia, o colorido tonal e timbrístico) influenciam nossa percepção de mundo. E isso não é novo, mas já referenciado pela filosofia, comprovado pela neurociência, empregado pela musicoterapia e ensinado nas salas de aula de música.
Não é “Fake”. Nem “pancadão”.
Antonio Pessotti é músico, doutor pela Universidade de Campinas (Unicamp), pesquisador colaborador do Laboratório de Fonética e Psicolinguística (IEL – Unicamp) e professor de Canto e História da Música na Escola de Música Maestro Ernst Mahle (EMPEM).
Muito boa reflexão. Grande Antônio!
👏👏👏
Ensaio digno de divulgação