Questões etimológicas

Algumas palavras são quase poesia.

Era provavelmente um domingo de fina garoa no século XVIII. Um homem caminha pelo campo, contemplativo, porque ainda não havia futebol e as pessoas sofriam menos, podendo criar mais neologismos, quando nota uma família de patos deslocando-se em fila indiana. Na chuva, os patinhos se esforçam, mas seus passos patéticos (afinal, eles eram patos!) pouco fazem além de sujar os seus peitos de lama. O andar inseguro logo inspirou um novo verbo.

Durante anos o Brasil patinhou, lusitanamente. Mas D. Pedro II se foi e vieram os galicismos. De repente, tínhamos um patim sob os pés, e não somente como um modo mineiro de se referir às pequenas aves aquáticas. Como patinar soava mais familiar aos ouvidos do que o verbo original, deixamos de patinhar. E a criativa ideia do nosso latente torcedor do Benfica, surgida naquela manhã nublada e longínqua, teve seu sentido discretamente alterado.

Outra palavra interessante é decorar. Tão odiada e banalizada pelos nossos estudantes, porque não a empregam em seu sentido etimológico. Refere-se a coração, cor em latim, ao espaço para os romanos onde se alojavam a afetividade, a inteligência e a memória. Não se confunda, entretanto, com decoro, empregada, como exemplo, na expressão decoro parlamentar. A palavra, neste caso, não possui nenhuma relação com o belo sentido anterior. Assim como esta última não a mantém com a ação de corar, de enrubescer-se por um ato vexatório.

Às vezes, a palavra é um filho que abandona a casa em que nasce e sai para o mundo. Como cortesia, atributo civilizado e amável dos que frequentavam a corte. Desta nobre associação sobrou, nas nossas casas de lei, na nossa corte, apenas a presença do bobo, que na verdade é um palhaço muito esperto, eleito de forma nada engraçada. A cortesia desceu a rampa, e se ainda pode ser encontrada em nossos dias, ela está nas ruas, nas atitudes de uns poucos cidadãos. Nos plenários, a cortesia, como os nossos patinhos, apenas patinha, ou patina, enlameada até os cabelos.

E sem qualquer poesia.

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Alexandre Basso é aluno do 4º semestre do Curso de Letras-português da Unimep.

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