Ulysses Guimarães já dizia: em política é preciso ouvir a voz das ruas. Se entre nós ainda estivesse, certamente acrescentaria: é preciso também ouvir a voz das redes sociais… E, como que em uma síntese do que vai por trás da relevância disso, cartazes dos jovens que tomaram na segunda-feira (17) as cidades pelo País indicavam: “Saímos do Facebook”.
É literal. O movimento se alastrou inicialmente pela web, mas os jovens, deixando essa zona de conforto – em que milhões se conectam e quase sempre ninguém encontra ninguém –, de cartazes em punho e aos brados de seus gritos de guerra passaram a ocupar as ruas de Brasília e de várias capitais brasileiras.
Em São Paulo, onde o rio de gente acabou desdobrando-se em várias passeatas, a contagem mais conservadora indica pelo menos 100 mil pessoas envolvidas. Em contraste com a brutal reação policial no dia 13, geradora, esta sim, de vandalismo, nesta segunda-feira a palavra de ordem mais emblemática sem dúvida foi “Que coincidência / não tem polícia / não tem violência!”.
A massa em movimento não só foi muito superior à da semana passada, como acabou ocupando simultaneamente vários pontos da cidade: o Largo da Batata, em Pinheiros, toda a extensão da Avenida Faria Lima em direção à zona sul, ocupando a Ponte Estaiada e o seu trecho na Marginal de Pinheiros, as avenidas Rebouças, Brigadeiro Luís Antônio, Paulista e ainda o acesso ao Palácio dos Bandeirantes.
Quem conhece a cidade sabe o que isso representa em extensão. E, exceto pelas poucas dúzias de manifestantes que, ao fim, inconsequentemente radicalizaram atitudes em frente à sede do governo paulista, tudo se deu na mais absoluta ordem. Sem a presença da polícia.
Sem partidos, sem política? – Pra mim, alguns aspectos chamaram especialmente a atenção. Antes de tudo, a esmagadora maioria de jovens, entre 18 e 30 anos, que compõem essas manifestações. Isso é tão acentuado que chegou a causar, num cinquentão como eu, certo constrangimento, confesso, como que me sentido meio fora de lugar.
Outro dado: se o tal aumento da tarifa de ônibus se mantém à frente das reivindicações, há muito o protesto avança para questões de fundo. Difusas, é verdade, mas lá estão insatisfações explícitas à baixa qualidade do transporte público, à corrupção, às mazelas políticas, aos superfaturamentos com os eventos futebolísticos sediados no Brasil, ao descaso com a educação e á saúde, às ações do Congresso despregadas do interesse da população, e à não representatividade dos partidos políticos.
Dilma, Alckmin e Haddad tiveram seus nomes reiteradamente vinculados a impropérios. Ressalte-se: trata-se do símbolo dos três níveis de poderes na capital paulista. Na depredação à Assembleia Legislativa carioca – indignações à parte –, cabe notar que não houve o menor dano ao também histórico prédio do Teatro Municipal, localizado nas imediações. Mesmo a turba parecia saber o que estava fazendo…
O alastramento desse movimento pelo País pega a muitos de surpresa. E a falta de uma organicidade mais tradicional dele traz ainda mais complexidade à sua compreensão. Somado ao distanciamento da realidade pública em que têm se colocado as distintas instâncias de governo, isso tudo desnudou a incapacidade delas em digerir o movimento em processo.
Mordazes, jocosas, ingênuas ou politizadas, as palavras de ordem expressas nas manifestações chamam a atenção pela abrangência que vão alcançando e pelo fato de, cada vez mais, as críticas dirigirem-se incondicionalmente a todas as siglas partidárias. A óbvia reação à frivolidade das elites políticas brasileiras e seus partidos quase deu origem a um conflito efetivo, dentro da própria manifestação: várias dezenas de jovens se indispuseram com representantes do PCO, estes munidos de bandeiras e farta propaganda ideológica impressa.
Em torno de uma enorme faixa colorida expressando “Nem 1 partido nos representa” (foto), partiram para o enfrentamento com os militantes organizados, aos gritos de “partido não!” e “oportunistas”.
Flacidez democrática? – E aí vem a grande questão. Se os partidos políticos e o seu exercício são, quer se goste ou não, o grande instrumento do Estado democrático, o que está a indicar tamanha repulsa às instituições político-partidárias? De que forma trazer resultados efetivos a essa agenda tão difusa de críticas e manifestações nesse quase levante popular no Brasil?
Pergunta-se: pr’além do resgate mais do que legítimo do direto de se manifestar amplamente sem violência policial, o quanto esse clamor da população que vemos desrepresar-se pelo País está mais a indicar certa flacidez da democracia em prática por aqui, que de fato um caminho para sua solidificação? Flacidez no sistema democrático brasileiro gritantemente hostilizado nas ruas, ou também mesmo nesse movimento popular? Eis uma questão.
Pra encerrar, ainda um registro do vivenciado na noite de segunda. A juventude ocupando as áreas públicas paulistanas apresentou sua releitura bem-humorada de um grito já clássico, ao longo de décadas de história de manifestações: “O povo / unido / é gente pra caralho!”.
———————-
Heitor Amilcar é jornalista, editor e sócio-proprietário da Jacintha Editores.
(a foto que ilustra o artigo é também de autoria de Heitor Amilcar e tem os direitos reservados em nome de seu autor).
Heitor,
Orgulho de ter dividido contigo o espaço profissional durante tantos anos. Sempre muito inteligente. Parabéns pela matéria! Abraço
Ivonete
Gentileza toda tua, Ivonete.
É grande a satisfação por compartilhar aqui no DE reflexões sobre o momento que atravessamos.
Grande abraço.
HA