O tratamento que damos ao “outro” do outro informa o tratamento que damos ao outro do nosso próprio eu.
Há vários motivos acidentais que me levaram a ser parte da rede Acampa Brasil pela Paz e o Direito a Refúgio. Ainda assim, quando eu me pergunto, por quê, dentro de tantos temas relevantes, o direito ao refúgio mobiliza minha ação, eu encontro uma resposta.
Essa mesma pergunta eu havia me colocado antes, quando, por muitos anos, eu me envolvi com o tema da mobilidade urbana sustentável. Na época, eu regressara ao Brasil, depois de morar alguns anos na Alemanha, com uma bicicleta na bagagem e a determinação de permanecer ciclista – o que em Piracicaba seria impossível, me diziam.
Eu não agi politicamente pelo tema da mobilidade para poder ser ciclista – para ser ciclista eu simplesmente pedalava– eu agi para reivindicar a cidade. Eu me sentia alienado pela logística dos carros, da escola, do trabalho, da religião, e era na rua, no parque, no rio que eu via e vivia minha liberdade.
Com minha ação política, eu ocupei a cidade! Pela primeira vez, em muito tempo, pertenci e me senti em casa. Apesar disso, ainda me sentia alienado de mim mesmo. Ocupara a cidade, mas ainda não me pertencia, pelo menos não como eu gostaria.
Eu era diferente de mim mesmo, menos messiânico do que a religião queria, menos merecedor do que o sistema capitalista exigia, e, não obstante, eu não queria rejeitar a mim mesmo. Eu não queria me odiar.
Porquanto eu era próximo demais a mim mesmo, próximo demais do meu outro, eu tentava acolher o “outro” de outros que também não encaixavam, a quem não deveria ser permitido entrada. O esforço não era novo, mas se tornava gradativamente mais explícito e politizado. Mais do que temê-los, por me lembrarem que eu era livre para ser diferente, eu os admirava.
Antes ainda de reconhecer minhas próprias lutas interiores, conheci minha bandeira política pelo direito do outro de aparecer, ocupar e pertencer.
Foi isso que me fez aceitar o convite para ser parte do Acampa. E é aqui que eu encontro minha resposta, que compartilho com vocês. Eu tento acolher o “outro” do outro, porque é a única maneira que sei de acolher o outro do meu próprio eu–minha política externa ensina a política interna e a política interna transpira minha política exterior.
Esse acolhimento do outro não opera no nível do dever, da lei, da culpa, mas da generosidade que é intrínseca ao ato. A disposição em si não resolve conflitos práticos sobre controle de fronteiras, não dilui conflitos de interesse, mas inspira a ação.
Antes de estipularmos quem tem direito prioritário ao refúgio, é importante lembrarmos que a exigência de policiarmos a entrada–quando justificável–vem de limites operacionais, e não da política que suporta a prática e a nossa atuação.
Me parece que é aqui, no nível dos sentidos da política do acolher, que a nossa luta por sensibilizar e defender o direito ao refúgio se dá em grande medida. É por isso que a pauta incomoda tanto, afinal deixa claro a possibilidade de um outro modo de ser.
Tiago Cerqueira Lazier é cientista político, membro da rede Acampa Brasil pela a Paz e o Direito a Refúgio.
Foto de capa: SECOM/Salvador.