Já reparou que nada continua perfeito sem dar trabalho? A sala limpinha empoeira sozinha; a casa dos sonhos exige reformas; carro pede revisão; computador nasce obsoleto e já vem com programas solicitando atualizações.
E quanto às pessoas? Gente nasce imperfeita por obra da natureza e, até para manter-se apenas mais ou menos bem, dá muito trabalho. Sem os devidos cuidados, relacionamentos mágicos terminam em tédio ou chifre; amigos se distanciam; inimigos se aproximam; filhos adoecem ou aprontam; animais de estimação, que não são gente, viram uma peste.
Perfeição, sem manutenção, descamba. E isso é culpa do tempo, que passa e vai erodindo tudo. No entanto, quando falei com ele sobre o assunto, o tempo desconversou e pôs a culpa em nós, os humanos, e em nossa mania de almejar, em conjunto, perfeição e permanência. Segundo ele, toda perfeição, mesmo ilusória, é temporária.
O engraçado, nessa mudança contínua, é que os quebra-galhos e as soluções provisórias, aos quais recorremos para atenuar temporariamente nossos problemas antes de resolvê-los de vez, acabam por tornarem-se permanentes.
Durante décadas, minha avó manteve baldes sempre à mão, para colocar sob as goteiras. Ela vivia prometendo que ia consertar o telhado, mas tremia só de pensar no transtorno da reforma. Eu era criança e adorava o corre-corre na hora da chuva. Queria uma casa com goteiras e baldes para mim também. Lógico que eu queria. Aqueles baldes eram quebra-galhos tão antigos que faziam parte da família.
Já minha tia usava a reclamação como válvula de escape a fim de manter um casamento infeliz. Falar mal do marido era mais fácil do que se divorciar. Quando alguém lhe dizia que tomasse uma atitude ou ficasse quieta, ela respondia: “Eu tomo atitude o tempo todo. Eu reclamo. Ele que não muda.”
É, nada permanece, mas o provisório beira a eternidade! E isso porque ninguém exige maravilhas de algo que está ali apenas para remendar uma situação. O estepe do carro não precisa ser novinho, serve se funcionar até chegarmos à borracharia. Aquela bronca pro forma, que damos em nossos filhos quando aprontam em público, não tem verdadeira intenção de educar, porém consegue inibi-los um pouco e, de quebra, passa a mensagem de que nos importamos com o desconforto que nossos monstrinhos sem limites provocam.
Se eu quisesse construir um merecido monumento ao eterno quebra-galho, daria a ele a forma de um canivete suíço. Os primeiros canivetes não passavam de navalhas com lâminas retráteis ou dobráveis. Dizem que foram os suíços que resolveram aperfeiçoá-los incluindo ferramentas. Hoje em dia, há canivetes personalizados que podem ter desde ferramentas tradicionais (lâminas, abridores, saca-rolhas, chave de fenda, serrote, alicate…) até pen drive, lanterna, bússola, GPS… São bonitos, bem feitos e até ajudam, mas não deixam de ser quebra-galhos com aura de sofisticação utilitária.
Já tentou serrar algo ou abrir uma lata com um canivete? Requer prática, mas funciona e nos deixa transbordantes de alegria, pois jamais recorreríamos a ele se não estivéssemos sem ferramentas convencionais.
O mesmo acontece com os livros de autoajuda e os manuais do tipo “faça você mesmo”. Não passam de quebra-galhos, que nos ensinam a remediar, sozinhos e sofrivelmente, problemas que um especialista resolveria melhor e mais rápido.
Perfeição custa caro e leva tempo. Querer manter o mundo em ordem é sinal de parafuso solto na cabeça. Só nos resta apertar esse parafuso, escolher o que merece nossa dedicação e colocar uns baldes sob o resto.
A autora:
Carla Ceres é escritora. Formada em Letras, venceu diversos dos mais concorridos concursos literários do país. No Diário do Engenho, Carla escreve sempre na terceira semana de cada mês.
kkkkk Adorei a ilustração, Alê! Beijos!
Eu adorei esse texto. Como desenvolvedor de software, era como se me visse num espelho. Explico: para desenvolvedores de software, e pessoas que “encomendam” esse desenvolvimento, existe uma “neura” para se atingir a perfeição.
Todo software “é concebido” por um motivo, para resolver um problema. São os famosos “requisitos”. Mas da “concepção” ao “nascimento” há um longo e doloroso período de “gestação”. Software não é comprado na padaria, mas demora para ficar pronto. Quando fica pronto, geralmente os motivos que levaram à sua concepção agora são outros. Três meses depois as necessidades que esse software deveria resolver são outras, se é que ainda existem. É nesse ambiente que surgem as “gambiarras” de software. Medidas provisórias que ficam para sempre, ou “protótipos” que acabam crescendo e se tornando os sistemas reais. Sem uma manutenção constante, tanto no período de construção como depois, nem um software, nem uma casa, nem um carro, nada, chega perto da perfeição.
Chegar impossível, mas é possível chegar perto com manutenção e melhoria contínua. O que não dá é esperar que uma coisa que foi perfeita um dia continue perfeita com o passar do tempo.
O primeiro martelo deve ter sido feito com um osso e um pedaço de pedra. Foi uma grande idéia no dia, mas dificilmente seria considerado perfeito hoje, quando temos martelos pneumáticos que “batem” sozinhos.
Excelente texto!
Valeu, Vitor Rubio! Eu pensei em usar a palavra “gambiarra” no texto. Acontece que nem todo mundo sabe o que significa nem o quanto é frequente em tecnologia. Quem trabalha com eletrônica já diz “gâmbi”, diminutivo carinhoso. 🙂 Beijos!
Interessante que em Inglês usa-se duas palavras diferentes no contexto de gambiarra: workaround no sentido de gambiarra “correta”, como adaptar em um carro uma peça que não é do modelo dele, mas é quase igual, na falta da peça correta, e a expressão “quick fix” para a gambiarra estilo “amarrar escapamento com arame”.
Ou seja, existe a gambiarra “ética” 🙂
Gostei da gambiarra ética! 🙂 Muito bom!
O ser humano inventa apetrechos pra facilitar a vida, e acaba complicando-a ainda mais… Muito legais seus textos, espero o próximo!
Valeu, Érico! Vejo você na Festa das Nações! Sucesso!
Adorei o texto. Carla encantando com suas escritas. Ótima gambiarra! Adorei rsrs.
Muito obrigada, Natália! Beijos!