Tagarelar é humano. A diferença entre pessoas “faladeiras” e “caladas” deixaria de existir se pudéssemos ouvir pensamentos. Enquanto os extrovertidos têm a maior facilidade de conversar com qualquer um (seja conhecido, desconhecido, real, virtual, animal, vegetal ou mineral), os introvertidos conversam, discutem, batem boca, brigam e fazem as pazes consigo mesmos e com os personagens que trazem na mente.
Dona Quinquinha, quando nos visitava, ia entrando sem tocar a campainha. Era tão “de casa” que começava a tagarelar com o portãozinho da rua:
— Nhéééc, pra você também — respondia ela ao rangido do portão. — Umas gotinhas de óleo nessas juntas iam bem, não acha, companheiro? Parece que tem reumatismo.
Ria gostoso da própria brincadeira ou, talvez, do breve “nhéc” com o qual o portão lhe respondia. Alguns degraus adiante, nova conversa. Dessa vez, com a maior árvore do nosso jardim:
— Bom dia, dona Acácia! Como a senhora está linda hoje! Toda cheia de flores amarelas. Parabéns! Continue assim.
Afundava-se quinquinhescamente pela casa a dentro, conversando com os gatos, os cachorros, os periquitos, as crianças, a empregada, até encontrar minha avó Rosita, com quem monologava por horas. Monologava sim, porque minha avó, criatura formal e reservada, era pouco mais eloquente em suas respostas do que o portão. Ouvia, impassível, notícias sobre a cidade inteira e, de vez em quando, sem alterar o semblante polidamente plácido, soltava exclamações apáticas: “Imagine!”, “Quem diria?”, “Ãh-ãh!”
Durante anos, as amigas Quinquinha e Rosita se complementaram. A tagarelice de uma impunha uma trégua às batalhas mentais que povoavam o silêncio da outra. Quando, para martírio dos anjos, dona Quinquinha foi bater papo com os portões do Céu, minha avó começou a resmungar sozinha. Rememorava situações difíceis que superara com toda elegância, sofrendo calada e guardando mágoa pelo mal que lhe fizeram e pelas poucas e boas que deixara de dizer a quem merecia.
Orfandade, casamento infeliz, viuvez na pobreza e todos os sapos que engolira pela vida ressurgiam. Aí minha avó, que se orgulhava de nunca ter brigado com o marido na frente dos filhos, desenterrava o falecido e lhe soltava os cachorros em cima. Fazia o mesmo com a jararaca da minha bisavó, a quem jamais contrariara. Exumava-a e rodava a baiana.
Por sorte, a maioria das pessoas se encontra num ponto intermediário do rositoquinquinhismo. Eu, bisneta de jararaca e neta de mártir, nasci naja literária em pele de cordeiro. Dou o bote verbalmente, quando a paciência acaba.
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Carla Ceres é escritora
Quem diria? Ai Carla! Acabei me revisitando em seu texto… kkkkk… Que sufoco!! Passei do “Ãh-ãh!”… encontrando-me no estágio da exumação familiar!! Coitados! Passarei zíper na boca e deixarei livre os pensamentos para não me recalcar ainda mais! Terapia é caro, amiga!
Beijo.
Célia (aos risos…)
Acho que todo mundo tem um pouco de rositoquinquinhismo, Célia. 🙂 Beijos!
Olá Carla, e que tudo esteja bem!
Sempre um belo escrito, muito humor e, bem difícil não gostar das tuas crônicas. Como eu não sou de muita conversa, bem, mas já passei maus pedaços, somente ouvindo, pessoas do tipo que te perguntam e quando você se prepara para responder ou falar que não está entendendo ela mesmo responde, e eu fico sem qualquer chance,
Mas por cá tenho a chance de ler esta bela crônica e admirar também esta bela imagem cá reproduzida que você compartilha, e que entendo eu, é tão cúmplice da crônica. E como sempre tuas escolhas são sempre acertadas!
E assim grato por tuas gentis visitas lá pelos dois espaços eu desejo que seja sempre tão intenso e feliz este teu viver, um grande abraço e, até mais!
Isso acontece comigo direto, Sotnas. Fico rouca de tanto escutar. 🙂 Obrigada pelo carinho! Abraço!
“aham” =)
Uhum! 🙂
Minha mãe era tão tagarela, que quando me levava para visitar uma amiga (das muitas que falavam pelos cotovelos) e eu já cansada pedia para ir pra casa ela dizia: não deixei menino chorando em casa, você é a caçula…(e tome conversa). Quem não identifica um personagem familiar na sua humorada e deliciosa crônica, não sabe o que é “falar pelos cotovelos”). Eu, mal falo pela boca, só pelos dedos…Adorei! Beijos!
Gostei da resposta da sua mãe, Lúcia. Eu também só sou de “tagarelar por escrito”. 🙂 Beijos!
Sou mega sua fã Carlinha!
hahaha A minha mãe é quase uma Dona Quinquinha e eu desenvolvi uma capacidade mental de bloquear um monte de frases dela. É quase um poder X-mem… Coisa incrível que me salva da loucura!
Mas sabe, quando ela tá longe, me faz falta hahahahahaha
Excelente texto, como sempre! Beijos!
Faz falta sim, Camila. Já vivi isso. A gente se acostuma. Se a pessoa tagarela tiver uma dor de garganta e não puder falar, parece que a casa ficou vazia. Beijos e obrigada!
me lembro dos portões fechados sem cadeado ou outra trava, ficava somente no trinco, qualquer um que chegasse poderia abrir ‘se fosse de casa’, quem tinha portão de madeira era na tramela, bons tempos aqueles em que a pessoas conviviam entre si, hoje a distancia humana vai além do cadeado no portão.
parabéns Carla, me fez lembrar que todo mundo tinha oleo singer em casa pra acalmar as resmungonas dobradiças rsssss.
Isso, Idinaldo! Eu não me lembrava do nome do óleo. Era esse mesmo. A gente chamava de “óleo de máquina”. Valeu!!!
Minha querida
Mais uma crónica cheia de boa disposição e que se lê com o maior prazer.
Um beijinho com carinho
Sonhadora
Obrigada pela visita, Sonhadora! Beijos!
Oi, Carla!
Amei Quinquinha e Rosita. A Quinquinha me lembrou uma vizinha que eu tinha, também uma tia…rsrs
Você é ótima!
Também tive uma vizinha “Quinquinha” que monologava até com os surdos-mudos que pediam esmola. 🙂 Obrigada pela força, Regina! Beijos!