Para que serviu a Comissão da Verdade?

Para que serviu a Comissão da Verdade?

434 mortos e desaparecidos políticos, “tragédia humana que não pode ser justificada por motivação de nenhuma ordem”, definida em “cenários de horror pouco conhecidos por milhões de brasileiros”. São “vítimas de crimes cometidos pelo Estado brasileiro e por suas Forças Armadas que, no curso da ditadura, levaram à violação sistemática dos direitos humanos à condição de política estatal”. Tudo documentado em papéis, depoimentos, denúncias investigadas. Dados que vieram a público em dezembro de 2014, quando a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela presidente Dilma Rousseff, publicou seu relatório finaldepois de ouvir 1.121 depoimentos, realizar 80 audiências e sessões públicas, percorrer 7 unidades militares e locais utilizados pelas Forças Armadas para a prática de tortura e outras violações de direitos.

Dez anos atrás, ao se discutir em uma unidade de ensino federal técnico em Piracicaba o livro sobre os efeitos da ditadura militar na cidade, ouvi de um estudante, em alto e bom som, que não entendia porque tudo o que relatávamos dos anos da ditadura militar indignava tanto. “Tá tudo igual. É que vocês não conhecem a periferia. Nem o jeito que a polícia nos trata. O que importa é o que está acontecendo conosco, agora.” Estatísticas comprovam o que o garoto dizia. Em 2015, o New York Times garantiu que, em 2013, a polícia brasileira matou 5 vezes mais que o FBI.

Em 2021, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro informava que agentes da PM respondiam por 85,6% dos 1.250 relatos de torturas e maus tratos revelados. Em 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 6.430 pessoas foram mortas por agentes públicos, numa média de 17,6 por dia. Acompanhando o quadro, destaca-se a impunidade: em 2016, os ministérios públicos do Rio de Janeiro e São Paulo pediram à Justiça o arquivamento de 9 em cada 10 casos de mortes provocadas por policiais nas capitais daqueles estados.

Então, para que serviu a Comissão da Verdade?

Para além da importância política, o esforço de quase 3 anos de trabalho da Comissão Nacional da Verdade, constituída para “apurar e esclarecer, indicando as circunstâncias e a autoria, as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 (o período entre as duas últimas constituições democráticas brasileiras)”, incomodou alguém, levou alguém aos tribunais, puniu responsáveis? Não. O documento não chegou às escolas, não teve divulgação que impactasse na compreensão das novas gerações sobre o que fora a ditadura militar. Quantos professores de História terão lido toda a documentação? Quantos juízes ou juristas teriam mergulhado naqueles calhamaços, semelhantes aos autos de processos sem fim? Quem, além de descendentes dos perseguidos, dos desaparecidos, dos torturados, terá acompanhado todas as entrevistas, entendido que aquele documento era a expressão até então mais detalhada e fiel do que fora o tempo dos militares no Brasil, a partir de 64?

Neste quadro de quase indiferença por parte da população, há os que entendem que a criação da Comissão Nacional da Verdade teria sido um dos motivos da reação militar à permanência da presidente Dilma Rousseff, influenciando seu processo de impeachment em 2016. Dilma foi torturada, conheceu de perto a Justiça Militar, cumpriu pena no Presídio Tiradentes. Dilma sabia que tudo o que a Comissão da Verdade documentara era real e devia ser oficializado. E talvez exatamente isso tenha amedrontado tanto aos militares – os na ativa e especialmente os da reserva. Apesar da Comissão, o aparato militar e policial continuou com seu escudo protetivo nas últimas seis décadas, seguro de impunidade, continuando a replicar violências que envolvem especialmente a população periférica, mais pobre e negra, com ameaças, prisões ilegais, agressões, tortura, invasão de favelas.

Se é possível, entretanto, listar os maiores benefícios da Comissão Nacional da Verdade, destaque-se a criação, a partir de então, de comissões da verdade em algumas cidades e universidades, propiciando um debate e investigações ainda que restritas a determinados núcleos. Em Piracicaba não houve nenhuma comissão da verdade, seja junto ao poder público, seja em instituições de ensino. Mas as violações aconteceram, especialmente nos primeiros dias após o golpe de 31 de março, visando especialmente estudantes, políticos e trabalhadores, muitos deles presos e mantidos incomunicáveis durante dias.

No mundo todo, comissões da verdade foram além de registros documentados. Serviram, em alguns casos, para processos de reconciliação. Em outros, de punição. É tempo de fazer com que também no Brasil tais comissões sirvam a algo mais do que simples fontes históricas a pesquisadores do futuro.

Para conhecer melhor tudo o que aconteceu, basta acessar o livro “Piracicaba, 1964”, entre as páginas 100 e 139 e 174 a 201.  O download gratuito está disponível em http://editora.metodista.br/publicacoes/piracicaba-1964

O relatório integral da Comissão da Verdade pode ser acessado em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/


 

Beatriz Vicentini é jornalista e coordenadora/editora do livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior”. Em parceria com o Diário do Engenho, editora esta série para o site.

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