Padre Júlio Lancellotti e a Cidadania Ativa

A instalação de paralelepípedos embaixo de alguns viadutos, na região da Zona Leste da cidade de São Paulo, visando impedir que as pessoas em situação de rua tenham onde se abrigar, talvez seja a representação de uma lógica política que institucionaliza a exclusão social. Pura expressão da banalidade do mal. O mal radical, que já não precisa ter qualquer pudor ou melindre, está livre para se manifestar, na dinâmica cotidiana de negação do outro como gente e do não reconhecimento de sua cidadania.

As maldades e o vazio humano se tornaram dimensões cotidianas. Os governos já nem mais se preocupam em esconder a quem realmente servem: Mamon. É a banalidade do mal, que avança em meio a uma sociedade perplexa, atônita, incapaz de demostrar qualquer reação. E vida que segue, com os cidadãos de bem – sem nenhuma empatia, compaixão e solidariedade – dormindo o sono tranquilo, pois, desfigurados de humanidade, já nem mais se reconhecem em sua própria condição humana.

Neste triste cenário de terra arrasada, torna-se fundamental que vozes se levantem. Ecoa então a voz retumbante e a atitude corajosa de Padre Júlio Lancellotti. Tomado pela santa ira e pela mais profunda indignação, Padre Lancellotti se alinha à tradição profética efraimita, denunciando os falsos profetas de Baal, que promovem a exclusão, a exploração, o sofrimento e a morte dos pobres.

A justiça, o direito e a radical fidelidade ao Evangelho concedem a insuplantável autoridade moral de Padre Júlio Lancellotti, que se levanta contra a lógica empedernida de uma política de morte, dinamizadora de uma economia sem coração. Padre Lancellotti não deixa de atualizar o gesto de Jesus contra os vendilhões no Templo, dando exemplo lapidar de cidadania ativa, apontando o caminho da resistência, da luta política prolongada.

Padre Júlio Lancellotti prepara, forma e educa com seus sermões, cheios de beleza e profundidade teológica, ancorados na grande tradição da Teologia da Libertação. Mas Padre Lancellotti, sobretudo, convida, convence e arrasta multidões à conversão com sua coerência de vida, sua opção preferencial pelos pobres e suas ações sempre comprometidas com a defesa da dignidade humana.

Quebrar e retirar os paralelepípedos, depositando flores embaixo dos viadutos que abrigam os pobres – aqueles que também não têm onde reclinar a cabeça –, é atualizar, no tempo, na história o projeto do Reino de Deus, apontando os caminhos para a construção da utopia de uma sociedade de irmãos. É isso que Padre Lancellotti tem assumido como sua missão, em fidelidade radical e criativa ao movimento de Jesus. É por isso que causa tanto incômodo a um cristianismo de fachada, corrompido por uma perspectiva teológica que somente busca prosperidade e retribuição.

Conheci o Padre Júlio em meus anos de juventude, quando ainda cursava filosofia. Ele já atuava na Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de São Paulo. Sempre foi uma referência importantíssima em minha formação, articulando fé e política.  Padre Lancellotti, o profeta do contemporâneo, resgata e atualiza a força da denúncia profética, a coragem da verdade e a contundência das ações que transformam, sempre em compromisso estreito com a justiça, o direito e a mensagem do próprio Cristo. Isso é cidadania ativa. É a visão ampla e profunda de política, que sempre se coloca, com a mais profunda esperança, a serviço da vida.

Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia pela Universidade Católica de Braga, mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP e professor no Instituto Federal campus Piracicaba.

(foto de capa Padre Júlio: arquivo online da CEBI -https://cebi.org.br/noticias/genero/padre-critica-machismo-homofobia-e-bolsonaro-e-ganha-as-redes-sociais/)