O que havia quando ainda não havia coisa alguma, quando nada havia? Os gregos chamavam esse ponto crucial de Khaós, os astrofísicos descrevem como aquele não momento antes da grande explosão universal. O que havia antes dessa explosão que deu início ao tempo e espaço? Uma ervilha negra flutuando no cosmos? Um não-espaço cujo tempo preencheu com poeira estelar a golpes de martelo?
Do caos nasceu a terra e o céu: Gaia e Urano ou Ayé e Orún, feminino e masculino. Os antigos gregos acreditavam que Cronos – o tempo – nasceu quando decepou o pênis do seu pai, Urano, e jogou o membro nas águas primordiais, dando início ao oceano, as espumas do mar e até mesmo Vênus. Nascer, desde então, é estar sob o signo do tempo e do caos.
O caos é o vazio transbordante, o som do silêncio. O caos não pode ser representado em cores, narrado em palavras, ritmado nos tambores, mas ele é tudo isso. É a visão de Marduk girando Tiamat entre as estrelas e lançando-a no firmamento. Exu matando o pássaro ontem com a pedra que somente lançou amanhã. A orelha de Van Gogh. Olodumarê entornando o líquido da criação que estava presente no jarro de barro primordial e criando Igbá. Obatalá embriagado de vinho de palma enquanto sua irmã, Oduduá criava o mundo.
O homem vive nesse barulho incessante, uma luta feroz, mas é ele próprio o caos, pois sua carne ganha musculatura e seu espírito vibra nas distensões desse nada onipresente. É o desespero diante dos pensamentos que se distraem com o vento. É a força. A força que Ulisses empreendeu para retesar seu arco e matar os pretendentes que desejavam sua mulher. Uma vontade que vem serpenteando do princípio ao fim. É também esquecimento, um dos grandes temas da Odisseia, pois Ulisses lutava, sobretudo, para não esquecer o pé de oliveira plantado no centro da casa na terra de Ítaca.
A arte, em um sentido generoso e lato, é medicina diante desse caos, é a capacidade humana de olhar para esse grande tumulto e transformá-lo em um bloco de sensações. A arte desacelera o infinito num campo místico finito – nesse sentido ela tem parentesco com a filosofia e com a ciência. As cores do caos compõem um instante do nada em devires girassóis, as palavras são a sintaxe do caos e a música é o tempo mergulhado no caos, mesmo que seja em um silêncio de quatro minutos e trinta e três segundos. Arte é serenidade, mesmo quando sangra.
Rafael Gonzaga é escritor e historiador com mestrado e doutorado em Cosmogonias, Artes Africanas e África Imaginada pelas Vanguardas Europeias. É autor do livro “A Jornada de Pablo”, publicado pela editora Lyra das Artes.
(A arte que ilustra o artigo também é obra do autor).