Quem conhece o quadro “O Sono da Razão Produz Monstros,” pintado em 1799 por Francisco de Goya, compreende o quanto essa pintura também traduz os dilemas do mundo contemporâneo. É realmente uma pintura impressionante, que capta com genialidade as angústias, incertezas e medos de um tempo demarcado pela violência e pelo abandona da razão. É o final do século XVIII quando o movimento Iluminista embasava os debates na defesa de uma sociedade livre, alicerçada em princípios racionais.
Interessante é a força e o sentido do título dessa pintura de Goya. Quando a razão dorme ou é deixada de lado, os monstros despertam, ganham vida e passam a dominar a realidade. Goya faz a crítica à sociedade de seu tempo, mas não deixa de descrever um movimento da história, que se repetirá em todos os projetos despóticos, obscurantistas e totalitários.
É mesmo intrigante essa ideia de uma razão adormecida. Como pode o ser humano perder a sua capacidade mais definitiva e reluzente? É justamente a capacidade de pensar, racionalizar que demarcou a trajetória humana e civilizacional. O que significaria então uma razão que dorme? Isso é realmente possível? E o que seriam esses monstros despertos em oposição à razão atenta?
A história está recheada de situações e períodos nos quais determinadas sociedades simplesmente se descuidaram e deixaram a razão adormecer. Os monstros logo revelaram suas aterrorizantes faces e manifestaram seus sinais, promovendo uma visão desesperadora. Talvez o exemplo mais clássico de um período de razão adormecida seja justamente a ascensão do Terceiro Reich, na Alemanha nazista, sob a liderança de Adolf Hitler. Logo a Alemanha, filha dileta da Europa, portadora de uma longa tradição cultural, com tantos personagens renomados e ilustres nos campos das artes, das ciências e da própria filosofia deixou a razão cair no sono mais profundo, dando oportunidade para que os piores monstros se revelassem. A humanidade, no momento de maior distração da razão, experimentou o fascismo e todas as brutalidades e violências que ele foi capaz de produzir.
O fato é que já passou da hora da razão despertar. É preciso que a sociedade abandone as perspectivas anticientíficas, anti-intelectualistas, obscurantistas e negacionistas, que insistem, contra toda lógica e evidência, em afirmar absurdos. A complexidade do mundo e da vida pedem um conhecimento cada vez mais elaborado, aberto, questionador, crítico e problematizador. Um conhecimento ancorado na mais profunda ética, capaz de construir possibilidades e muita esperança, projetando-se a serviço da sociedade, das pessoas.
Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal, campus Piracicaba. Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião.
Contato: adelino.oliveira@ifsp.edu.br