O Papa e a Sociedade do Espetáculo

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A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculista. No espetáculo da imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si mesmo.

– Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo

A lógica midiática da sociedade do espetáculo chega a ser patética. Sob a perspectiva unicamente dos índices de ibope e audiência, todos os temas passam a serem tratados de maneira a atrair o maior número de público, telespectadores. Tudo se resume a uma mera jogada, estratégia de marketing, a explorar a comoção e o sensacionalismo. O conteúdo, o tema a ser apresentado é irrelevante, o que menos importa. O fundamental é que tudo se transforme em um grande show, um espetáculo com o qual o público possa se entreter, sem maiores desgastes, exigências com análises e reflexões.

Neste caso, primeiro a renúncia de Bento XVI e ato contínuo a liturgia de unção do novo Papa passaram a mover os holofotes da grande indústria midiática. De fato, o Conclave foi alçado à categoria de grande espetáculo midiático do momento. Sabendo que o tema se esgotará em poucas semanas, a grande mídia o aborda até a exaustão, repetidamente. Não há, entrementes, nenhuma preocupação em alcançar o autêntico significado a envolver o ritual. Tornou-se comum depararmo-nos com generalizações, simplificações, reduções de ricos conceitos teológicos.

Ávidos por informações, os telespectadores – não fiéis – são então tomados por uma avalanche de reportagens, veiculando ideias, concepções estereotipadas e banalizações. Na grande mídia, não há espaço para aprofundamento, reflexão, análise criteriosa, pois tais posturas não vendem, não dão ibope. Predomina a leitura rasa, vazia, superficial do fato, em detrimento do conteúdo, da densidade a conduzir a um genuíno conhecimento.

Ressalta-se, sobressai uma incompreensão total das categorias teológicas que compõe, definem o especial momento que a Igreja vive. Para a grande mídia, estamos apenas diante de mais um processo eleitoral, tomado por conchavos, tensões partidárias, dossiês secretos, grupos de interesse, aglutinação de forças de poder e nada mais. Como se o papado pudesse ser reduzido a um mero poder hierárquico, não havendo nada além das disputas, da correlação de forças. Toda dimensão de tradição, de significado simbólico, de espiritualidade, de concepção teológica se esvai, torna-se nulo, diante de uma postura midiática que almeja a comoção, o mero entretenimento, o aplauso e a audiência dos telespectadores.

Todos querem noticiar e acompanhar a unção do novo Papa, que é visto como um ídolo, um verdadeiro pop star. Mas bem poucos querem seriamente ouvir e alcançar o sentido profundo de suas palavras, de seus apelos. Sugestivo, por exemplo, que tenha se tornado senso comum dizer que o cardial Ratzinger – o Papa Bento XVI – é um grande intelectual, um teólogo competente. Mas o que isso significa, de fato, bem poucos sabem. Quantos leram seus escritos? Uma sociedade que se contenta em apenas repetir o que a mídia veicula, sem se preocupar em indagar sobre o significa último do que está sendo explanado.

Os próprios conceitos são utilizados de maneira imprecisa, vaga, descontextualizados. Noções como conservador, tradicional, reformista, revolucionário etc são lançados ao grande público, sem nenhum cuidado para que tais expressões alcancem sentido histórico. A única questão que interessa, na medida em que comove e entretém, é demonstrar que há tensões, rivalidades, disputas de poder.

Noticia-se muito a questão da Igreja Católica estar vivendo uma grave crise, explicitada pela drástica diminuição do número de católicos no mundo. Esse fato é ilustrado pela ausência de fiéis nas Igrejas, especialmente no contexto da Europa. Ora, seria uma grande incoerência se as igrejas cristãs estivessem cheias de fiéis, em um ambiente cultural tão marcadamente não cristão. A Igreja vazia não deixa de ser reflexo direto de um mundo que abandonou, há tempos, os princípios fundamentais do cristianismo. Na grande mídia, este fato aparece como sendo consequência direta da atuação do Papa, deixando implícito, em uma lógica confusa, que com um Papa mais aberto as pessoas seriam mais cristãs, se fariam mais presentes nas Igrejas. É no mínimo uma dedução simplista e equivocada.

A sociedade contemporânea impõe grandes e urgentes desafios ao cristianismo, desafios estes que não são somente do Papa, mas de todos os cristãos, inclusive dos não católicos. O cristianismo é portador de uma profunda mensagem – alicerçada na ética do amor e do serviço ao próximo –, capaz de atribuir pleno sentido à existência. A doutrina cristã deve ser vislumbrada como um grande legado, um precioso patrimônio, a mais elevada sabedoria, justamente por ser divina, via que conduz a humanidade ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades. A crise do cristianismo é, sobretudo, crise humana, reflexo de um tempo ceifado de esperança, encurralado em uma dinâmica materialista, a reduzir a vida à mera aquisição de bens.

A Igreja é a portadora primeira, a guardiã genuína da boa notícia cristã. As dimensões do amor, da vida como doação, da fraternidade, da compaixão, da solidariedade se compõem como verdades atemporais, que não passam, não perdem o lugar e o sentido. Mas tais verdades, por possibilitarem o florescimento de relações justas, devem ser assumidas como universais e absolutas por todos os homens, todas as sociedades.

No seio do cristianismo há uma tradição genuína, original na qual o presbitério, o bispo – aquele que se coloca a serviço no altar e na vida – era aclamado, ungido por seus irmãos de fé. Descortina-se aqui o sentido profundo de Eclésia (Igreja), a assembleia de fiéis que se reúne para viver e partilhar sua fé em Jesus Cristo. A Igreja que se constituí como povo de Deus, na dinâmica do seguimento mais próximo, íntimo de Jesus, assume três eixos fundamentais, basilares da vida cotidiana: a oração litúrgica, na permanente relação espiritual com Deus; a vida comunitária, na constância do amor e do serviço ao próximo e a comunhão ritual, na real e concreta partilha de todos os bens, dando o tom da vida fraterna e da sensibilidade, a promover uma sociedade de justiça, na qual todos sejam incluídos, pela simples dádiva de serem filhos diletos do próprio Deus.

A missão da Igreja continuará, prosseguirá sob a responsabilidade de todos os cristãos. É sempre possível conjecturar em torno do perfil e da nacionalidade de um novo Sumo Pontífice – e o universo midiático do espetáculo esmerou-se por criar, fomentar a expectativa em relação a um Papa brasileiro. Obviamente, um Papa oriundo da América Latina ou mesmo da África, além da representação e força simbólicas, poderia se constituir portador de um olhar mais atento, sensível à realidade e riquezas culturais próprias dos povos menos favorecidos e mais oprimidos.

A mídia, com sua limitada, reduzida percepção da vida como espetáculo, não consegue alcançar, em definitivo, o sentido mais elevado da unção de um Papa. Para além da dimensão midiática, para além da unção dos cardeais, há uma Igreja que é povo de Deus, a caminhar em busca de um discipulado cada vez mais alinhado ao projeto de vida apresentado por Jesus Cristo, o divino Salvador. Eis o desafio de todos os cristãos, inclusive do Papa.

 

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Professor universitário, Adelino Francisco de Oliveira é teólogo, filósofo, mestre em Ciências da Religião e doutorando em teologia pela Universidade de Braga – Portugal.

 

14 thoughts on “O Papa e a Sociedade do Espetáculo

  1. Prof. Adelino,parabéns pelo ótimo texto!

    Ao ler o texto,duas indagações me surgiram,gostaria muito de saber o que você pensa:

    Qual o principal motivo que leva as pessoas a se afastarem da igreja nos dias de hoje e principalmente na Europa?

    Quais as reformas que o senhor acredita que devem realmente ser feitas pela igreja nos próximos anos,a partir das polêmicas atuais?

    Abraço.

    1. Estimado Sarto,

      É muito bom encontrá-lo neste espaço.

      Você propõe duas questões densas, complexas. Vou apenas introduzir um caminho de reflexão, sem a pretensão de esgotar o assunto.

      A questão da crise religiosa, particularmente na Europa, decorre em grande parte de um materialismo exarcerbado, dinamizado por uma cultura niilista e hedonista.

      Sobre as transformações no seio da Igreja, gostaria de apontar dois temas que considero fundamental: a abertura para o casamento do padre e a ordenação de mulheres.

      Precisamos marcar um café para aprofundarmos tais questões.

      Esteja bem!

    1. Prezada Rosélia,

      É bom encontrá-la circulando pelo espaço do Diário do Engenho. Sobre o texto, é apenas uma provocação, problematização para pensarmos…

      Esteja bem!

    1. Prezada Márcia,

      É bom vê-la passeando por este espaço. Há muitos bons textos, inclusive de outros escritores. Aproveite o rico conteúdo do Diário do Engenho.

      Esteja bem!

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