É engraçado como o percurso da humanidade se repete incansavelmente ao longo dos anos. Quando pensamos em mártires da história, é muito fácil lembrar de Jesus Cristo, figura retratada no novo testamento do livro sagrado – a Bíblia – das religiões cristãs.
Abandonando os questionamentos do que seria verdade ou não dentro da história de Cristo, podemos resumir sua participação histórica da seguinte forma: os romanos dominavam os judeus, que por sua vez queriam libertação. Jesus começou uma revolução, porém, se recusou a partir para combate físico, focado em seus ideais – por isso morreu como vil judeu, incriminado pelos próprios compatriotas, para bem depois começar a ser reconhecido como divino, como santo, pelo próprio Império que o condenou.
Apresentado esse pensamento, sigamos avançando diversos anos na história. Mais precisamente 1431 depois de Cristo, teremos um novo mártir, A Donzela de Orleans, mais conhecida hoje como Jeanne d’Arc ou, como comumente traduzido, Joana. E como procede a história dessa camponesa até seu martírio? Com a França dominada pela Inglaterra, essa figura começou uma revolução, levando à coroação de Carlos VII. Não tendo mais serventia, foi convenientemente capturada pelos inimigos e posta ao fogo, condenada por heresia pela própria instituição religiosa da época: a Igreja Católica Apostólica Romana. Anos depois, Joana foi oficialmente canonizada como santa pelo próprio grupo que a condenou, na tentativa de se reparar a injustiça de sua condenação.
Vamos então tecer comentários em cima de outro martírio, um muito mais inusitado que os dois primeiros, uma vez que não se trata de uma pessoa: A Paixão de Joana d’Arc, um filme mudo francês, de 1928, dirigido pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer, que conta a história acima citada, focando-se no retrato da prisão, julgamento e condenação da Donzela de Orleans. A película deixou marcas na sétima arte, um legado infindável para as obras posteriores a ela. Pela primeira vez era vista a história de Joana d’Arc no cinema, assim como era a primeira vez que uma história era contada através de uma narrativa cinematográfica ousada com tantos closes que expunham rostos nus de maquiagem, o que compõe uma teia de fatores impensáveis para a época.
Fato é que muito além de cutucar uma ferida do passado, a fita começou uma transformação dentro do que era tido por cinema na época e gerou diversas controvérsias, não só pelo conteúdo, mas pela forma também. Foi assim que a obra assinou sua sentença e acabou sumindo do mapa, sendo destruída, queimada, assim como a própria personagem de seu conteúdo. Parece que não se aprendeu nada com o passado mesmo…
Dreyer tentou reviver A Paixão de Joanna d’Arc, muito ciente da importância daquilo que gerou. Trouxe o filme de volta a partir dos negativos de tomadas alternativas que ficaram de fora da montagem, porém a frustração é grande demais (de uma forma que apenas o mais visionário dos diretores poderia compreender), somente sem superar a teimosia e a vontade de expressão.
Uma pena que o diretor não pode ver sua obra se tornar aquilo que estava ali retratado. Em 1981, treze anos após sua morte, um rolo intacto do filme foi encontrado. Hoje a fita pode ser apreciada como um dos mais importantes filmes da história, um grande marco do cinema, como uma espécie de canonização da sétima arte. Parece que já vimos essa história antes, não?
A Paixão de Joanna d’Arc se faz uma obra completa: tem um conteúdo revolucionário e uma história por trás de sua concepção que serve de reflexão tanto quanto aquilo que está ali retratado fisicamente. Afinal de contas, se pararmos para pensar no que é visto hoje no cinema, podemos perceber a irrelevância cômoda que toma conta da sétima arte.
É difícil demais gostar daquilo que é diferente do que se costuma ver, sendo que o que gera esse pensamento massivo é o próprio interesse do mercado, que procura sempre rapidez e lucratividade em seus investimentos, deixando que a alienação conveniente tome conta de seus próprios produtos – que dificilmente podemos ver como obras cinematográficas levando em consideração o modo de produção capitalista, no qual tudo é milimetricamente pensado para não desagradar nem trazer reflexões profundas – dentro daquilo que expõe, o que acaba prejudicando outros filmes, os quais, quem sabe, mais tarde não serão devidamente reconhecidos. Mas isso é cíclico também, tanto é que os teóricos frankfurtianos já tinham previsto isso a um bom tempo atrás…
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Ramirez Ballota é aluno do curso de cinema da UNIMEP.