O avanço da pandemia do novo coronavírus tem exposto, de maneira dramática, as entranhas podres do projeto neoliberal. As profundas desigualdades sociais, que marcam a história do Brasil desde seu processo de colonização perdurando até os dias atuais, alcançam agora um nível insuportável. No limite, a morte precoce sempre esteve no horizonte dos mais pobres. Com o coronavírus esta realidade desponta com toda sua brutalidade.
A cada dia os dados e informações sobre o estarrecedor número de pessoas mortas e infectadas faz despontar os sentimentos de perplexidade e desolação. Mas é preciso dizer que cada morte tem um rosto real e encerra uma história existencial. São projetos, sonhos, amores que se vão.
Basta um olhar mais atento para perceber que as mortes seguem uma dinâmica específica, perpetuando um perverso roteiro já bem conhecido em nossa história. É possível se identificar uma geografia, uma etnia, até mesmo uma classe social. Não são mortes aleatórias. No Brasil há um corte de classe e etnia. O coronavírus incide ferozmente sobre as comunidades mais pobres, alcançando os mais vulneráveis socialmente. Talvez seja por já ter compreendido isso que o coro pelo final do isolamento se faz ouvir cada vez mais forte.
Aliás, o que significa mesmo ficar em isolamento? Esta é uma possibilidade factível para todos os brasileiros? É evidente que não. É possível se contabilizar milhões de pessoas morando em condições inadequadas, sem contar os milhares que simplesmente não têm onde morar. Há um déficit habitacional no país que nunca foi equacionado. As reformas agrária e urbana nunca foram realmente implementadas.
O isolamento social, como a única maneira de se prevenir contra o contágio do coronavírus, acaba por escancarar o drama da falta de moradia digna. Quem não mora com condições adequadas ou mesmo não tem onde reclinar a cabeça está fadado a se contaminar. No Brasil são milhões de pessoas nestas condições. E já são quase apenas elas que completam os índices diários de mortos.
Recentemente, em Piracicaba, 50 famílias foram desalojadas em cumprimento de uma ordem judicial de reintegração de posse. O episódio, por si só, já é revelador do drama habitacional que envolve o cotidiano da vida no município. Com a necessidade do isolamento social, as famílias estão expostas, alijadas de um teto, em meio a uma crise social sem precedentes. Após a execução da decisão judicial, qual futuro se espera para essas famílias? As condições que se encontram é problema de quem? Quais respostas o poder público municipal tem dado? Parte destas famílias foi abrigada em uma Igreja, passando a viver da solidariedade da população.
É preciso a ação protetora e promotora do Estado neste momento. A política pública deve ter no horizonte salvaguardar estas famílias, muitas delas acolhendo idosos e crianças. Como buscar alternativas e caminhos para a solução desta demanda: aluguel social, um programa habitacional disponível para receber estas famílias? No final, todos sofrem com as vicissitudes do outro. Este recente episódio de reintegração de posse mobilizou muitos segmentos de nossa cidade.
O conhecimento desta delicada realidade, acabou por despertar em muitos o sentimento de cooperação. A indignação primeira deve ser a mola propulsora para uma organização maior, sensível, questionadora, que coloque na cena pública a perspectiva de que a cidade só poderá crescer, prosperar, tornar-se organicamente solidária, quando nenhum cidadão, absolutamente nenhum, estiver alijado e apartado de seus direitos sociais.
Adelino Francisco de Oliveira é filósofo, professor no Instituto Federal campus Capivari e pré-candidato à prefeitura de Piracicaba pelo Partido dos Trabalhadores.