O Homem é um ser musical!

O Homem é um ser musical!

A cada dia, novos indícios revelados por pesquisas em antropologia, neurociências, e também na área da linguística sugerem que a resposta seja ‘sim’. E vai além! A linguagem musical é inata! Ou seja, todo ser humano nasce com a capacidade de desenvolver linguagem musical.

Até onde se sabe, todas as culturas do mundo têm algum tipo de expressão musical. O registro mais antigo, que data de 60.000 anos a.C., foi o desenho de flautas encontrado em pinturas rupestres. Em relação ao canto, como não havia registro sonoro, não é possível determinar exatamente quando passou a fazer parte da vida dos humanos. Acredita-se que na Grécia antiga o canto era usado como forma de comunicação. Não é à toa que o nome dado pela linguística para a “música” da fala, ou o modo de falar, tenha origem no grego e signifique “junto com o canto”, isto é, prosódia.

Há pesquisas mostrando que o modo de falar seja o primeiro componente da linguagem verbal que aprendemos com nossas mães quando ainda dentro do útero. Logo após o nascimento, somos capazes de reconhecer a voz materna mesmo antes de pronunciar nossa primeira sílaba. E seguimos desenvolvendo nossas linguagens por toda a vida.

A linguagem, segundo o Aurélio, possui significado amplo que resumidamente refere-se à capacidade que as pessoas têm de se comunicar umas com as outras, exprimindo pensamentos ou sentimentos através das palavras, da voz, das artes ou mesmo por códigos. Então, a linguagem verbal desenvolvida pelo homem para falar e a linguagem musical parecem, já por definição, muito conectadas.

De fato, as pesquisas mostraram que dentre as várias áreas cerebrais que são ativadas por ambas as linguagens, ao menos duas de importância são compartilhadas. Além disso, mostraram também que a capacidade humana para a linguagem, seja musical ou verbal, parece inata e está disponível para desenvolver-se em maior ou menor grau. O grau de desenvolvimento vai depender de fatores genéticos e ambientais, como os socioculturais. A prática de exercícios para desenvolver essas habilidades é fundamental. Melhores resultados são obtidos se iniciada ainda na infância. Os exercícios fazem parte da rotina das crianças quando estão adquirindo linguagem verbal. A linguagem musical não é diferente. Aquele que exercita mais, com um instrumento musical por exemplo, acaba desenvolvendo mais essa linguagem. Todos nascemos capazes de expandir, se quisermos, a capacidade musical. Tanto é verdade que estudos recentes mostraram que indivíduos sem qualquer formação musical formal são capazes de reconhecer e processar informações musicais automaticamente. O grupo do neurocientista Stefan Koelsch demonstrou que o cérebro humano tem habilidade musical implícita. Involuntária e inconscientemente, somos capazes de identificar estímulos musicais e processá-los de modo altamente diferenciado sem nunca termos estudado música! Não é uma ótima notícia?

Ao analisarmos com mais atenção essas linguagens, vamos perceber que a conexão entre elas não se limita ao simples compartilhar de áreas cerebrais. Ambas têm atributos em comum: entoação, ritmo, melodia, harmonia, ênfase, timbre e volume entre outros tantos.

A capacidade de entoação – mudança ou variação de um tom para outro – não é privilégio de alguns. Na linguagem musical, pesquisadores revelaram que o chamado ouvido absoluto – capacidade de reconhecer de ouvido qual nota musical é emitida por qualquer som ambiente – antes de ser um dom divino para poucos, pode ser adquirido por qualquer mortal não virtuoso que se submeta a um treinamento iniciado na infância.

Mas, a variação de tom não é exclusividade da linguagem musical. Algumas línguas, faladas principalmente na Ásia e África, usam o tom para distinguir o significado de uma mesma palavra. No mandarim falado na China, por exemplo, a palavra ‘ma’ pode significar ‘mãe’, ‘cavalo’, ‘cânhamo’ ou ‘insultar’ dependendo do tom que for usado para falar. Outro exemplo está no português que falamos diariamente. Nas sentenças: ‘Maria foi estudar’. Ou ‘Maria foi estudar?’ Para diferenciar se estamos afirmando ou perguntando, basta mudar a entoação!

Além da variação de tom, ao darmos ênfase, mudarmos o timbre, o ritmo ou o volume, é possível saber se a pessoa que nos fala está com raiva, indiferente, se está tentando nos seduzir, se está deprimida ou se está feliz. Essa interpretação que damos a nossa fala pode ser complementada com gestos e expressões corporais. A linguagem musical é diferente? Claro que não! Quem não chorou com a interpretação de Elis Regina na canção “Atrás da porta” com letra de Chico Buarque e melodia de Francis Hime? Quer se emocionar? https://www.youtube.com/watch?v=35FPZR24djg

Outro componente comum da fala e da música é a harmonia, combinação de diferentes sons indispensável para produzir uma sensação agradável e de prazer. Na música, temos os acordes. Na fala, é um fenômeno que ocorre inconscientemente em todas as línguas. O português brasileiro é riquíssimo em harmonização. Um exemplo disso é a palavra ‘menina’ que grande parte de nós pronuncia como ‘minina’. Nesse caso, o “i” é falado no lugar do “e” para harmonizar com o “i” da sílaba tônica! Essa troca pode tornar a palavra mais agradável para se falar e ouvir.

E oque dizer do ritmo? Está presente em nossas vidas desde o momento em que, no ventre materno, nosso pequeno coração inicia suas primeiras e ritmadas batidas. Ao nascer, iniciamos os primeiros compassos ritmados da respiração. Depois disso, tudo segue respeitando um ritmo: falar, andar, menstruar, trabalhar, dormir, comer, cantar…

Portanto, acredito que SIM, o ser humano é um ser musical. E se você se considera um desafinado, lembre-se que“…no peito dos desafinados também bate um coração…”! Sábias palavras da canção de Tom Jobim (1927-1994) e Newton Mendonça (1927-1960) imortalizada por João Gilberto (1931-2019).

Creio que diriam os filósofos: Falo, logo, sou musical!


 

 

 

 

Beatriz Funayama Alvarenga Freire é médica, cantora,  atleta, doutora em medicina pela Unesp, pós-doutora pela Rijkuniversiteit Groningen – na Holanda – e mestre em linguística pela Unicamp.

 

39 thoughts on “O Homem é um ser musical!

  1. Parabéns Bia
    Excelente artigo, muito agradável, esclarecedor e informativo.
    A música como forma de expressar e liberar os sentimentos, é um atalho para um ser humano mais leve e feliz!

  2. Parabéns Bia
    Excelente artigo, muito agradável, esclarecedor e informativo.
    A música como forma de expressar e liberar os sentimentos, é um atalho para um ser humano mais leve e feliz!
    Parabéns pela sua versatilidade científica e cultural

  3. Dra Beatriz mais uma vez nos brinda com um excelente artigo. Total domínio do tema.
    Uma pessoa admirável.
    Aguardo novas publicações.

  4. Esse dom comunicativo da Beatriz é incontestável! Capaz de transformar temas complexos em uma transmissão de ideias clara, simples e agradável! Parabéns! Marques.

    1. Grazie Marques! Fico feliz em saber que minha linguagem está conseguindo deixar temas complexos claros. Esse é um dos objetivos. Obrigada pelo retorno.

  5. Esse dom comunicativo da Beatriz é incontestável! Capaz de transformar temas complexos em uma transmissão de ideias clara, simples e agradável! Parabéns!

  6. Lindo texto.

    Mais uma vez querida Bia nos ensinando à respeito da linguagem de forma leve, agradável e prazeroso, demonstrando total domínio da comunicação e linguagem.

    Parabéns Bia 👏👏👏👏

    1. Obrigada Henrique! Ótimo saber que vcs leitores estão gostando da minha linguagem, pois nunca me considerei uma escritora sequer razoável. Grande abraço!

  7. Amei o texto pois faz conexões interessantes entre as diversas áreas de conhecimento. Como diria o poeta… eu canto porque o instante existe…. beijos bia

    1. Obrigada Dr. José Paulo, neurocirurgião. Aí está! As surpresas que são reveladas a cada dia saindo de dentro dessa caixinha em que vc mexe todos os dias. Sinto inveja de vc nesse ponto. O cérebro está me fascinando cada vez mais. Beijão

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