O DIREITO DO REI,A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA E A IDENTIDADE DO POVO BRASILEIRO

O DIREITO DO REI,A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA E A IDENTIDADE DO POVO BRASILEIRO

Este será o costume do rei que houver de reinar sobre vós; ele tomará os vossos filhos, e os empregará nos seus carros, e como seus cavaleiros, para que corram adiante dos seus carros. E os porá por chefes de mil, e de cinqüenta; e para que lavrem a sua lavoura, e façam a sua sega, e fabriquem as suas armas de guerra e os petrechos de seus carros. E tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras. E tomará o melhor das vossas terras, e das vossas vinhas, e dos vossos olivais, e os dará aos seus servos. E as vossas sementes, e as vossas vinhas dizimará, para dar aos seus oficiais, e aos seus servos. Também os vossos servos, e as vossas servas, e os vossos melhores moços, e os vossos jumentos tomará, e os empregará no seu trabalho. Dizimará o vosso rebanho, e vós lhe servireis de servos.

1 Samuel 8, 11-17.

Tem algum poder sobre vós que não seja de vós mesmos? Como se atreveria a atacar-vos, se não tivesse vossa conivência? Que mal poderia fazer-vos, se não fôsseis os receptadores do ladrão que vos pilha, os cúmplices do assassino que vos mata e os traidores de vós mesmos?

Étienne de laBoétie, Discurso da Servidão Voluntária.

 

Com claro enredo apocalíptico, o processo eleitoral em curso avança, com destaque para a ascensão do falso messias, com seu fascismo exasperado. Os discursos fundamentalistas,tomados por evidente e forte tom religioso, suplantam o espaço da análise política. No lugar de especialistas em política –filósofos, cientistas sociais,historiadores – entra em cena a autoridade inconteste e irrefutável de obscuras lideranças religiosas, apontando para seus seguidores fieis – em uma versão contemporâneo do voto de cabresto –, o novo messias a ser aclamado.Como no Armagedom, sob o efeito de um transe quase hipnótico, cega a um mínimo lampejo de lucidez, há uma multidão que vocifera sua adesão ao projeto da besta, compondo uma cena dantesca.

É o eterno retorno de um processo mimético, no qual Barrabás torna-se novamente o escolhido. Em meio a uma grave crise econômica e social, diante de uma situação de caos identifica-se o bode expiatório, o grande culpado por todas as desventuras brasileiras: os do PT, com seu comunismo vermelho.O antipetismo, ideologicamente arquitetado, passa a ser o antídoto contra qualquer mobilização social. Em prol da aniquilação do PT e de toda luta que representa, todos os meios, mesmo os mais torpes, passam a ser admitidas e legitimadas. O antipetismo desvela-se como o elemento catalisador, a aglutinar a jornada da insensatez. Bradando com fúria, a horda marcha cegamente em direção ao abismo, sem se importar minimamente com as consequências da destruição do tecido social. Mas no altar dos holocaustos sobra para o povo, para o pobre o lugar de vítima sacrifical. O problema é que a ressurreição não se anuncia em um horizonte próximo, pois o reinado da besta, do falso messias, e seu neoliberalismo inconsequente, pretende ser por mil anos, decretando o fim da história.

De fato, o filósofo tem muito menos a dizer do que o teólogo sobre o atual momento política brasileiro. As representações religiosas demarcaram o campo político. Não há espaço para se debater, mesmo porque diante de verdades tácitas, cristalizadas, verdades de fé, não se faz necessário debate algum. O diálogo seria até sinal de fraqueza na fé. Perante o oponente, o inimigo, identificado como incrédulo comunista, a única reação plausível é o da estupidez, da violência verbal e física.

Ideias inspiradoras como democracia, cidadania, direitos humanos, alteridade, diversidade tornaram-se proscritas. Quem as pronuncia de pronto é refutado como ideólogo de esquerda, que deveria ser logo banido para Cuba ou Venezuela.

O falso messias, já sem nenhuma máscara, pode revelar abertamente suas concepções nefastas. Em uma sombria e pérfida inversão, o carrasco, o torturador mais cruel passa a ser exaltado como herói. É preciso se educar para a legião, com disciplina e máximo rigor – não para a vida, como propôs Rousseau, em seu Emílio. O chicote do feitor passa a ser o instrumento pedagógico por excelência, tomando o lugar do lápis, do livro, da arte. Nesta tenebrosa distopia, já não há mais lugar para o indígena, quilombolas ou comunidade LGBT. A velha ordem do mundo deve ser restaurada pela via da força, a balas e tiros, sob as bases do olho por olho, dente por dente. O totalitarismo fascista torna-se a referência de sistema político. E tudo isso se dá à luz do dia, sem meias palavras. E a multidão entusiasticamente continua a bradar: queremos Barrabás!

É fácil reconhecer o falso messias, aquele que traz na testa o zelo da besta do neoliberalismo, na idolatria que cultua o deus mercado – elevado acima de todos. A exploração, a opressão e a morte do povo, do pobre são as oferendas ao deus capital nesse culto macabro. O falso messias é vazio e opaco, sua boca prolifera mentiras, fakenews, fraude, violência e opressão. Alienado de sua própria humanidade, tornou-se incapaz de reconhecer a dignidade e humanidade do outro.

Ainda na trilha de imagens e representações da sabedoria do universo bíblico, como chave hermenêutica para se compreender o contemporâneo, interessante e sugestivo é que na tradição do Antigo Israel, há um momento crítico e emblemático para os hebreus. Olhando para os outros povos, Israel decide abrir mão de sua genuinidade como nação e pede ao profeta Samuel um rei:“Escolha para nós um rei, para que ele nos governe, como acontece em todas as nações” (1Sm 8,5). Israel deseja ser como os outros povos, tendo um governo monárquico. Naquele contexto, ter um rei significava, sobretudo, abdicar de um projeto original de sociedade, pautado no princípio do tribalismo igualitário.

A louca insistência por um rei, leva o próprio Deusa advertir o povo sobre o direito do rei. Apesar da contundência das palavras divinas, proferidas pelo profeta Samuel, o povo insiste na insanidade de querer ter um rei. É a servidão voluntária, por meio da qual o povo abdica de sua liberdade, de seus direitos – em nosso contexto da democracia – para eleger o seu próprio algoz. Haverá então choro e ranger de dentes, tortura e perseguição ao Resto de Israel – para usarmos a expressão do profeta Jeremias – que, com a coragem da verdade, resistiu estoicamente à sedução da besta neoliberal. Perda de direitos, desregulamentação da economia, devastação ecológica, entrega das riquezas nacionais, aumento da pobreza, do analfabetismo e da fome, recrudescimento da violência serão alguns dos sinais de um tempo nefasto, caracterizado pelo reinado da besta, que pode vir sob a forma de um governo fascista e totalitário.

Talvez a abordagem com tom escatológico possa até soar estranho e dar a impressão de que pouco se contribui para a produção de esperança. Mas é justamente o contrário. Apenas em uma leitura com perspectivas mais teológicas é que encontramos sentido e esperança no atual momento político por que passa o Brasil. É na mesma tradição bíblica que aprendemos que a verdade liberta e que, para além do armagedom que se anuncia, o bem e a justiça sempre prevalecem. O pai de todas as mentiras encontrará seu ocaso, diante do sol da justiça. Como o astro solar que nasce na aurora, a esperança de um novo tempo brilhará no coração do povo, da gente brasileira. Sob o reinado do povo, com a democracia restaurada, a liberdade será cantada em plenos pulmões. É o tempo de plantar a utopia, vislumbrando a promessa de mil anos de felicidade.

Não podemos nos esquecer que somos uma gente nova, o povo brasileiro – de Darcy Ribeiro –, forjado no encontro de muitos povos, com suas múltiplas culturas. Do duro e intenso processo de miscigenação e sincretismo trazemos, como herança, em nosso inconsciente coletivo, o que há de melhor: a sensibilidade, a solidariedade, a empatia, a abertura para o diverso, a capacidade resiliente de sempre nos reinventar. Tudo isso encontra-se, por hora, aprisionado em nossa interioridade brasileira. Nossa identidade enquanto povo não poderá ser contida por muito mais tempo, nem com a ideologia de um fundamentalismo redutor, nem com a virulência perversa dos torturadores, com suas baionetas.

Deixando as metáforas, mas sempre permanecendo com a esperança, é hora de semearmos esse novo tempo. Voltarmos às fontes, desde Paulo Freire, e reconstruirmos, em um vasto movimento de educação popular, as bases críticas para que o opressor possa ser definitivamente extirpado de nossos corações e consciências. É tempo de voltarmos à teologia, não aquela da retribuição nem da prosperidade, mas a da libertação, a nos relembrar a ética da solidariedade, como elemento chave para as relações humanas. É momento de entoarmos novas canções – ainda com Chico, Gil e Caetano, mas também com esses jovens poetas de vanguarda – a alimentarem e inspirarem uma outra resistência. É tempo de plantar.  Essa é a missão para o Resto de Israel, aqueles que não sujaram as mãos de sangue, curvando-se diante do deus capital e seu falso messias, nem muito menos as lavaram, como Pilatos. A messe é grande, a tarefa que a história nos impõe é a de reconstruir o Estado Democrático de Direito.

Vamos juntos!

 


 

 

 

 

 

Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia pela Universidade de Braga – Portugal – e professor no Instituto Federal de São Paulo campus Piracicaba. 

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