O brilho dos vaga-lumes

O brilho dos vaga-lumes

O brilho dos vaga-lumes

Por Rafael Gonzaga de Macedo

O título do texto é uma inspiração descarada de duas obras de autores que me são extremamente importantes, o primeiro deles é o cineasta Pier Paolo Pasolini e o segundo, o historiador francês Georges Didi-Huberman. No dia 31 de janeiro de 1941, o jovem Pasolini, aluno da Faculdade de Letras, que jogava como atacante no time da universidade, escreveu uma carta para um amigo adolescente contando uma experiência singular em Bolonha. Numa certa noite, vagando pelos campos, Pasolini e um amigo escalaram o Pieve del Pino e se depararam com uma quantidade imensa de vaga-lumes que formavam pequenos bosques de fogo nos arbustos. Pasolini invejou esses pequenos seres iluminados, pois, segundo ele, eles se amavam, pois se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes, enquanto Pasolini e seu companheiro se sentiam secos e artificiais.

Pasolini, então, associa o enxame de vaga-lumes com os rapazes que se encontram e, com suas másculas vozes inocentes, vivem sem se preocupar com o mundo ao redor, preenchendo a noite com seus gritos. Tudo nesses jovens, segundo Pasolini, transformava-se em virilidade potencial, em gargalhadas e risadas. Essa imagem é rapidamente interrompida, pois enquanto os dois amigos olham, maravilhados, para o brilho intermitente desses pequenos seres, ao longe, na planície esparramada diante de Pieve del Pino, dois grandes holofotes varrem o ar em busca de aeronaves inimigas. A luz intensa desses olhos saurinos apagam o brilho dos vaga-lumes. Como todos devem saber, em 1941 a Itália se encontrava em guerra ao lado do Eixo. Em 19 de fevereiro daquele mesmo ano, Benito Mussolini encontrou Hitler em Berghof, alguns dias depois, tropas inglesas começam sua reconquista da África oriental dominada pelos italianos e o exército da França Livre empreende sua campanha na Líbia. Em 8 de fevereiro a frota inglesa arrasa o porto de Gênova. Assim eram os dias e as noites desse final de janeiro de 1941.

A luz fascista não é a luz pregada pelos iluministas, é uma luz que cega e os holofotes que apagaram momentaneamente os vaga-lumes de Pasolini naquela noite em Pieve del Pino, voltaram-se para nós, em 2018. Nas vésperas da cerimônia de posse do novo presidente, Jair Messias Bolsonaro, eu assisti a peça de teatro Roda Viva no Teatro Oficina. O Teatro Oficina Uzyna Uzona fora desenhado pela arquiteta Lina Bo Bardi, a mesma autora do MASP, e foi fundado em 1958 por José Celso Martinez Correa. O Teatro Oficina se transformou em ponto de efusão de protestos e experimentalismo nos anos de chumbo durante o regime civil-militar que tomou o poder através de um golpe em 1964, por isso sua importância em nossos dias.

A atualização de Roda Viva para o momento em que vivemos parece ter deixado de lado a ênfase na construção de um popstar pela mídia (televisão e internet) e se debruçado com maior vigor sobre uma espécie de revista/crítica estética à nossa sociedade. Em determinado momento, para citar um exemplo, o teatro é invadido por um exército de “agro-bois” com suas roupas e chapéus característicos, entoando o famigerado e extremamente popular sertanejo universitário, estilo musical que cresce como erva daninha e, que eu, particularmente, acho pobre e de mau gosto.

Durante toda a narrativa há um personagem que parece ocupar um meta espaço, pois ele não fica exatamente no “palco”, mas sentado em uma mesa de bar ao lado dos espectadores. Esse personagem é o Mané (Marcelo Drummond) e lembra bastante a figura do malandro que existia e era valorizado pela esquerda nos anos 60/70. Mané passa mais de três horas bebendo cerveja e assistindo tudo de fora e quando é requisitado a dar uma opinião por Ben Silver, seu velho amigo e protagonista, quase sempre responde: que se foda!

É Mané, com seu niilismo passivo, que consegue trazer Ben Silver à des-razão e o faz renegar, mesmo que seja por alguns instantes, a máquina midiática que insiste em colocá-lo no centro dos holofotes, transformando-o em mercadoria e algoritmo. Mané não se enquadra, está sempre ali no entre lugar, confortável em seu botequim, tomando sua cervejinha. É um niilista – não necessariamente pessimista -, não cai na conversa mole da mídia e nem se deslumbra com o brilho prateado do amigo que, inclusive, acha uma merda. Trata-se de um eco da ideia romântica de malandro que vem desde a década de 60 para olhar o nosso momento atual e, com grande desdém, acha tudo um porre, careta e de gosto duvidoso.

O que esse personagem desdenha não se resume à cafonice representada pelas celebridades e youtubers, mas a impressão é que ele acharia até mesmo a esquerda uma chatice e ele pode ter muita razão em achar isso tudo. Prefere, portanto, fechar-se no bar e ver a banda passar com seu copo americano na mão e a garrafa de cerveja meio cheia na mesa. O grande problema e, talvez, esse seja um escorregão na peça Roda Viva é que o malandro representado pelo Mané já não nos serve mais enquanto perspectiva à esquerda. Pois, o contexto em que vivemos transubstanciou seja a cerveja ou o malandro em outra coisa, coisa-produto.

O último instantâneo de inteligência do ocidente não foi o surrealismo, como dizia Walter Benjamin, mas o romantismo anarquista que combateu o fascismo na Catalunha nos anos 30. Naquela época, os corpos se sentiram impelidos a certo tipo de sacrifício que, no fundo todos eles sabiam, era tudo ou nada. Foi um chamado, uma aposta e gente do quilate de Carl Einstein o atendeu. Mané não teria lugar na Espanha dos anos 30 e nem deveria ter lugar no Brasil de 2019.

Os vaga-lumes só voltarão a brilhar se forem em enxames, no crepúsculo distante da luz ofuscante dos holofotes fascistas. Pois esses pequenos insetos da ordem dos coleópteros e da família dos lampírides precisam da escuridão para brilhar e aparecer. Em 1975, Pasolini voltou a escrever sobre os vaga-lumes (L’articolo dele lucciole), mas desta vez ele foi bem mais sombrio. O cineasta acreditava haver um genocídio a olhos vistos. Sua tese era de que, embora, o fascismo havia perdido a guerra em 1945, nos seus escombros surgirá um outro fascismo ainda mais potente. Se nos anos 30 e 40 o regime de Mussolini tentara impor suas linhas de força à população italiana, esta conseguiu resistir na re-existência de suas próprias culturas locais, assim, mesmo diante do fascismo clássico havia ainda uma cultura camponesa ou operária na Itália, mas diante do novo fascismo, que Pasolini identificava com o consumismo, o próprio povo italiano se deixara levar para o abate através da morte dessas culturas particulares e pela ascensão de uma cultura média padronizada e mediada pela televisão.

Apesar desse vaticínio fatalista, quero acreditar que os pirilampos não deixarão de brilhar como relampejos, pois são nas horas mais sombrias que eles emergem iluminando as coisas com sua energia bruxuleante. É preciso no entanto, deixar de ser mané. Mais do que nunca nossos corpos precisam se movimentar e produzir pequenos círculos que bloqueiem a luz ofuscante que transforma tudo em mais um produto. Não se trata de uma aparição para brilhar em uma vitrine, mas a aparição de linhas de força que produza comunidades de afeto. Mais do que nunca é preciso criar atmosferas capazes de suportar o oxigênio que nos permite respirar.

A morte dos vaga-lumes significa o apagamento do teatro, da arte, do cinema e do saber – seja o acadêmico ou tradicional. O netflix não corre o risco, o consumo on-demand continuará num crescente até que tudo seja iluminado pelas luzes ofuscantes desse fascismo voraz, que devora toda diferença e diversidade e vomita o mesmo e o igual, por outro lado, a atmosfera necessária para o brilho desses seres acontece quando nos tornamos o público de teatro, das festas e encontros nas praças, nas exposições artísticas, em suma, em tudo aquilo que nos desvie do feixe de luz que emana dessa máquina moedora de carne que chamamos de fascismo. Nos tempos que vivemos, tornar-se vaga-lume não é apenas um dever, mas uma necessidade, quando os corpos precisam ser menos um organismo que respira e sobrevive e mais um espírito (Geist) que se expande em formas (gestalt) variáveis.

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Rafael Gonzaga de Macedo é historiador, escritor e curador de arte.

Imagem: ‘Prenúncio’, do autor do texto

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