Nos salões de Arte do Rei Peste!

Nos salões de Arte do Rei Peste!

Penitenziagite!Penitenziagite! A peste está entre nós e o pacto com o diabo burro lavrado em cartório eleitoral cheirando a enxofre. Penitenziagite! Doces Dolcinos desarvorados queimando enraivecidos em praça pública. Eia! O diabo é burro, mas é velhaco – e é mais Diabo por ser velhaco do que por ser realmente burro. A hora da cobrança chegou. Penitenziagite! Santos Ecos e Rosas sem nome! Santos Salvatores endemoniados! Santas doces Margaretes dolcinas. O tempo da colheita chegou. É hora! O tempo da indesejadas das gentes vir para o jantar. É hora! Quero ver chorar o burguês de giolhos, adiposidade amoral e monetária a Mário de Andrade, desfilando sua casca preconceituosa nos altares da dor – que a peste chegou para nivelar a todos. Penitenziagite! Espirrai! Espirrai!

As cidades, agora, se recolhem para dentro de si ante o sinal da peste. Vejo na mente a cena maravilhosa de Nosferatu, de Herzog: o demônio da noite soltando seus ratos pelas vielas, ruelas, vilas, becos e pontes – e a peste, se espalhando, vai deixando acumular pelas calçadas a podridão de corpos adoecidos esperando pela morte. Fecho os olhos e vejo um Klaus Kinsky virado em diabo noturno, dedos compridos em unhas brancas imensas a apontar para a grande mortalha que cresce, se entrelaça e corre. Diante do fim inevitável, dançam as pessoas na praça, celebrando em doentes e fantásticos banquetes a hora final que se aproxima minuto a minuto. Há música, há alegria efusiva e derradeira, há festas com gosto de despedida, há mesas públicas postas a todos, há desejo de sentir por ao menos mais uma vez o sabor inebriante da vida que se esvai. Santo Herzog. Santo e pai.

Fecho os olhos. Fechos os olhos e vejo também as muralhas erguidas, os portões fechados por dentro com ferrolhos. Fecho os olhos e vejo o castelo do Príncipe Próspero, de Allan Poe, guardando um imenso e seleto grupo de comensais – incrédulas pessoas de bem. Fecho os olhos e ouço e vejo e sinto o conto sanguíneo de Poe, sua Máscara da Morte Rubra – com seu sinete escarlate vibrando quente nos rostos daqueles que se achavam protegidos da peste dentro dos sete salões festivos da existência. A vida imita a arte. Paciência. Abro os olhos agora e desvejo a morte, real e temida. O relógio ebúrneo, carrilhão imenso, bate o tempo que falta para entrada do mascarado fantasmagórico derrubar ao chão, sem esforços, os que antes cantavam, dançavam e riam. A arte imita a vida. As dozes batidas se completam. Cai por terra o Príncipe Próspero e a prosperidade. Mestre Poe, seu conto de morte é canto de pura verdade.

Penitenziagite! Que a peste está no alto do Planalto e resiste às outras pestes. Eia! Que o diabo às vezes pondera demais sobre quem quer levar – caramba! Assim, também não dá! Escolher não dá! Penitenziagite! Que é hora! Não há posições certeiras, não há recheio de carteiras que possa salvar a quem quer que seja da hora celeste, da força da peste – que é cabra da peste que nos quer carregar. É hora. É hora. Histórias não podem faltar. Vibremos a literatura, último e primeiro consolo. Boccaccio também a vibrou em cem dias de solidão, em cem dias de segregação e recolha em castelos fechados ante a consternação do mal. Respirar é proibido. Decamerom atual. Decamerão. A arte é que imita a vida, então? Pois a peste sempre foi tema, sempre foi trama, sempre foi amarração de fatos e causos desde que o mundo é mundo, desde que o segredo profundo da maldição diabólica – a peste das pestes – se fez, na carne, constatação. Penitenziagite! Que a hora é triste e não há mais nada a se dizer dela. Que a hora é literal e literária. Releio Camus. A peste resiste ao tempo e sobrevive mais do que nós – que nem somos heróis de qualquer resistência. A história registra a História. Ainda nos vale a ciência? É tempo. Eia! Penitenziagite! E leia! Leia o que ainda resta para ser lido. Que a arte e a vida são uma e só – dolcina ilusão.  

Alê Bragion ainda é editor do Diário do Engenho.   

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