Noções de Coisas

cisne_negroEu prefiro ser

Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião

Formada sobre tudo.

Metamorfose ambulante  –  Raul Seixas

 

 

 

 

“O difícil desafio da primeira frase” – esse é o título do artigo publicado no caderno Sabático do Estadão, em 09/03/2013 (de autoria de Tracy Kidder e Richard Todd). O texto começa de maneira instigante: “Escrever é falar com estranhos. Você quer que eles confiem em você”. Confesso que me impressionou a sensação provocada por essas frases.

acorrentado

Ao escrever, nunca pensei em confiança, mas em um compartilhar de ideias, sensações, sentimentos, histórias. Por outro lado, imagino qual a formação, quais as crenças dos leitores e até qual seria o nível de curiosidade e interesse do leitor sobre meus escritos. Muitos dos que me leem sabem bem mais do que eu; com certeza a maioria. Minha verdade pode não ser a dos leitores, e é bem difícil que seja. Dona da verdade, então, nem pensar. Não há mesmo como não concordar que grande parte dos que me leem, senão a maior,  é estranha para mim. E, com esses estranhos e invisíveis leitores, pretendo compartilhar um segredo que guardo (e me incomoda) por toda a vida.

Essas considerações me fazem lembrar da difícil missão do professor, e me trouxeram recordações dos meus tempos de magistério, dos semblantes de alunos que muitas vezes mal respiravam, ansiosos por absorver o que lhes transmitia. Tive o privilégio de viver muitos momentos com essa qualidade. Eram grandes minha preocupação e minha responsabilidade para evitar palavras, frases, conceitos fora do contexto. Afinal, suas mentes, sua bagagem cultural, suas histórias de vida me eram desconhecidas. As classes de alunos se constituíam de estranhos para mim. A intimidade e conhecimento mútuo cresciam aos poucos, com a gentileza e confiança ao conduzir o trabalho.

blackboardHoje inúmeras queixas se originam nos artefatos tecnológicos que os alunos levam para a sala de aula, pouco se preocupando com a presença do professor. Abro um pequeno parêntesis para uma breve reflexão . Sei que esse fenômeno tecnológico (e uso de iphones, smart phones, ipads…) dá margem a intermináveis discussões.

Sobre esse assunto, gostei da argumentação do sociólogo, professor, intelectual, escritor italiano Domenico de Masi, autor de O ócio criativo, livro que recomendo. Em sua entrevista no Roda Viva, da TV Cultura, em 21/01/2013, disse: “Novos instrumentos tecnológicos devem libertar e não aprisionar. A escravidão a que muitas pessoas se entregam é voluntária, não é culpa da tecnologia…..Pequenos instrumentos não devem servir a demonstração de status ou serem objetos de escravidão, mas ferramentas que, com criatividade, melhorem a qualidade de vida, suas oportunidades de aprendizado e compreensão, melhorando e aumentando também a qualidade do seu tempo livre”. Com a palavra os pedagogos e interessados em educação.

Volto a escrever sobre a responsabilidade que, como professora, sentia diante de meus “estranhos alunos” e, ao escrever, diante dos meus distantes e desconhecidos leitores. Uma postura com que sempre procurei nortear minha vida é a de ficar na posição de argumentadora, de apresentar problemas e discutir soluções possíveis, nunca a de dona da verdade. Minha formação pedagógica e psicológica na universidade, a maneira como meus mestres se colocavam diante dos alunos e procuravam estimular e tirar o melhor deles são, com certeza, as responsáveis por essa minha escolha. Sinto-me privilegiada por ter tido tão sábios mestres. Não éramos estranhos para eles e nem eles para nós. Éramos estimulados a encontrar nossas próprias verdades. E nunca ter opinião formada sobre tudo.

dali4Passei a acreditar que o aprofundamento dos saberes  deve ficar por conta do aluno (e do leitor), graças à motivação e grau de curiosidade que conseguimos despertar. Com empenho e sorte, chegamos até eles com sucesso. Ao me preparar para relatar meu segredo, preciso contar-lhes sobre meu reencontro, nas arrumações de começo de ano, com um livro adorável que também recomendo a todos. Trata-se de “Noções de coisas” de Darcy Ribeiro, com preciosas ilustrações de Ziraldo. Darcy cita como inspiração Rui Barbosa com seu livro “Lições de coisas,” “escrito com o objetivo de ensinar aos professores das escolas primárias como dar aulas.”

O mestre Darcy, conhecido por sua rebeldia e atitudes corajosas de enfrentamento diante da situação política e intelectual de sua época, fala de modo muito inteligente, cativante, crítico, bem humorado, sarcástico e irônico sobre inúmeros assuntos.

Citando alguns: “Sabedoria”: “…Conheci muita gente considerada sábia  e quis aprender com elas. Não deu certo. Os sábios são muito minuciosos. Cada qual sabe lá sua coisinha e ignora todo o resto. E o resto é o mundo inteiro. Eles são variadíssimos”…; “Utilidade das doenças fatais” (puro humor); “Cocô&ovos”; “A teia da vida”; “Eletricidade”; “Prodígio”; “Pulgas” e tantos outros. Otimista, escreveu nos “Bichinhos da Terra”: “…O ideal seria fazer do planeta Terra o jardim dos homens, o santuário das plantas e dos bichos e, nele, um mundo justo e belo, em que toda a gente comesse todo dia e cada um respeitasse os direitos dos outros. Compor uma sociedade em que se cultivassem as ciências e as artes e na qual cada criança pudesse se fazer herdeira do patrimônio de sabedoria e de beleza da humanidade…”.

Terminar meu texto com essa brilhante e competente reflexão seria o ideal. Mas, ainda temos meu segredo. Agora começo a não sentir mais que escrevo para estranhos. Ao escrever, criei dentro de mim uma intimidade com o leitor que me dá coragem para o que vem abaixo.

No meu terceiro ano de escola (8-9 anos), havia uma matéria chamada “Noções de coisas”. Dona Sílvia, a professora, muito circunspecta, nos ensinava noções das coisas que ela achava importantes e certas. Ela se sentia  a dona absoluta da verdade. Seus alunos sempre foram estranhos para ela. Em uma aula essa preciosidade: “Quando comerem doces, nunca bebam água em seguida. Causa morte súbita”. Com certeza, portadora de leseira crônica, incorporei a noção dessa coisa e carreguei pela vida. No último aniversário do meu netinho, há menos de um mês, depois dos doces, ainda me peguei pensando se, ao tomar a água do copo que tinha na mão, estaria vivendo meus últimos momentos de vida…

Tomei. E aqui estou, escrevendo para meus não mais tão estranhos, distantes e invisíveis leitores. Dona Sílvia, que descanse em paz, estou certa, não leu Rui, não leu Darcy e não era, definitivamente, a dona da verdade.

Hoje sei. Ninguém é.

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Zilma Bandel é pós-graduada em Biologia

Zilma foto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

28 thoughts on “Noções de Coisas

  1. Oi Zilma, ótimo texto e excelente reflexão, é muito válido lembrar que ninguém é dono da verdade. Você me fez recordar de ensinamentos, similares ao comer doce e tomar água, que até hoje me perseguem na memória, como diziam que ingerir manga e tomar leite também mata! Pode imaginar? e por ai vai…Grande abraço. Marcelo e Maria Helena.

  2. Prezada Zilma Bandel,

    Obrigado pela partilha sincera, profunda, revelando seus segredos e aproximando escritor e leitor. Seu excelente texto me levou a dois pensadores. Primeiro Sócrates, com sua máxima “só sei que nada sei”. Depois pensei em Edgar Morin, com a perspectiva da complexidade.

    Esteja bem!

  3. Obrigada, Professor, por sua leitura e comentários elogiosos.
    Sempre que escrevo aguardo uma palavra crítica sua. É importante para mim, com certeza devido aos seus profundos conhecimentos de filosofia, teologia; devido ao seu profundo saber da alma humana. E, quando se escreve, muito de nossa alma se expõe.
    Feliz Páscoa!

  4. Zilma sábia é voce!
    Quantas coisas trazemos da escola, eu por exemplo se pisasse na faixa amarela perdia uma amiga. Até hoje tento desviar das tais faixas amarelas de pedestre e faixa de estacionamento. Isso vem da infancia. Muito bem escrito e “totoso” de ler. Continue escrevendo………….Feliz Páscoa………….miriam

    1. Obrigada, Miriam amiga!
      Sinto que é muito bom compartilhar histórias de vida e despertar recordaçãos (nem sempre boas…)! Fiquei feliz com sua leitura, com seu carinho e incentivo de sempre.
      Beijo carinhoso.
      Feliz Páscoa!

  5. Ainda bem que você recuperou a vontade de escrever.Não podemos mais ficar sem as suas crônicas.Muito boa …Beijos e Feliz Páscoa

    1. Muito obrigada, Olávia, pela sua leitura, carinho e incentivo. É importante saber como alguém com seu preparo e sensibilidade sente meus escritos.
      Beijo carinhoso.
      Feliz Páscoa.

    1. Muito obrigada, Zilah, irmã muito generosa e querida.
      Atividade tardia, mas que dá muito prazer. Esse retorno com tanto incentivo vai me dando coragem e vontade para continuar.
      Espero ter fôlego.
      Beijo carinhoso.

  6. Olá, Zilma:
    Que bom ver seu “medo” dar lugar à leveza de sua escrita.
    A leitura de sua crônica reavivou em mim a profunda responsabilidade do professor: “O magistério é um exercício de eternidade: o professor vive para sempre nos olhos e na mente daqueles a quem ensinou a ver o mundo pelas suas palavras e pelos seus gestos e exemplos” (Rubem Alves)
    Por outro lado, a alegria que momentos de nosso trabalho nos permitem partilhar Cora Coralina: “Feliz de quem transmite o que sabe, e aprende o que ensina”.
    Um grande abraço e uma Páscoa com muita luz e a certeza de renovar esperanças
    Newman

    1. Muito obrigada, Newman.
      Sua leitura e suas palavras me emocionaram pelo enorme respeito e carinho que sinto por você como professor, escritor e ser humano.
      Gosto de escrever, mas, aceitar o convite do Alê foi um ato de atrevimento meu, sei disso.
      Compartilhar lembranças, sentimentos, angústias e receber um retorno repleto de solidariedade e incentivo tem um gosto de amizade carinhosa e leal. E isso é tão bom!
      Esperando ansiosa seu livro!
      Só recebi hoje seu comentário. Ainda com o sentimento de renovação, de renascimento e de compartilhar o amor de Cristo, deixo com você um abraço repleto de afeto.

  7. Por que motivo desistir de escrever,se seus textos nos alegram,nos trazem reflexões as mais variadas,nos dão um alento!!! Você nos preenche de energia positiva com seus textos.Esse texto nos faz voltar à infância,onde está a origem de muitos dos nossos sentimentos guardados(como vc diz:meu segredo) e também algumas marcas que foram deixadas em nosso íntimo.Como diz um pouco acima o sr Adelino,a máxima de Sócrates “só sei que nada sei”deveria servir de alerta para aqueles que se julgam os “donos da verdade”.Existe a verdade absoluta?isso é ironia…Esses donos da verdade talvez,tenham mesmo insegurança e tentem convencer a si mesmos,se é que o conseguem!!!Tive,tb,”alguns” professores donos da verdade,na minha infância.Você retratou muito bem um exemplo de sua infância que até hoje(aniversário do Felipe)deixou uma “marquinha “em você.Eu também me lembrei de algumas marquinhas,com seu texto.Viu como vc se aproxima do leitor?Não desista ,não,deixe de nos alegrar com seus textos.Sempre aguardo aquele seu recadinho “novo texto”.Continue a compartilhar conosco esse talento que,felizmente, vc descobriu.Um grande beijo Dida

    1. Querida, Dida!
      Muito obrigada por sua leitura tão atenta e comentários repletos de sentimento e incentivo para essa minha nova atividade, que ainda considero um atrevimento.
      Vamos ver até onde chego.
      Desejo que esse tempo de Páscoa lhe proporcione o renascer e o reencontro, de que tanto necessitamos, com o amor do Cristo.
      Beijo carinhoso.
      Feliz Páscoa!

  8. Muito bom! Fiquei lembrando dos meus tempos de “aluno”, apesar que seremos sempre “alunos” pois a vida é um eterno aprendizado.Obrigado por nos trazer recordações
    tão boas.
    PS: Coitada da dona Silvia, devia sofrer depois que comia doces e outras coisas, pois dá uma vontade louca de tomar água ou algum líquido, acabei de comer
    um club social recheado e fui tomar suco de uva branca e daqui a pouco vou tomar água antes de dormir! Será que vou acordar “VIVO”???
    Ka ka ka kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk…

    1. Muito obrigada, Luís.
      Sua leitura e comentários são um incentivo importante para mim. Gosto de saber como minhas reflexões e lembranças chegam até o leitor. E, claro, fico feliz quando gostam e se manifestam.
      Você sabe que não havia pensado pelo lado da professora? Coitada, mesmo…
      Vivo, não é, amigo?
      Beijo carinhoso.

  9. Zilma, querida,

    como disse a Maria Olávia, já estava sentindo falta de suas crônicas! Esta, em particular, me interessou muito! Talvez por trazer ideias próximas da minha área, por estimular minhas lembranças de infância e de educadora, por trazer ideias de pensadores que admiro! Mas principalmente pela leveza de sua escrita, como comentou o Newman, e a transparência de suas ideias, que aproximam o leitor, como ressaltou o professor Adelino!
    Parabéns, amiga! Vá em frente! Carinho da

    Miriam

    1. Querida Miriam.
      Sempre a admirei e respeitei muito como educadora, como ser humano e amiga leal e solidária, como mulher e mãe de família sensível e cheia de garra. A distância que nos separa nunca foi motivo para enfraquecer os vínculos de uma amizade tão duradoura. Você sempre foi referência importante para mim.
      Gosto que meus escritos lhe tragam lembranças de seus melhores tempos de vida.
      Obrigada pelo incentivo e carinho.
      Beijo com muito afeto.

  10. Querida Zilma,

    muito bom seu texto e como sempre nos transmiti suas vivências e sabedoria de vida que tanto admiro. Concordo com Cora Coralina “Feliz de quem transmite o que sabe e aprende o que ensina”
    Parabéns e já estou aguardando a próxima!

    1. Querida, Rose.
      Você está sempre por perto me dando forças nos momentos difíceis e compartilhando minhas alegrias e conquistas. Tenho grande admiração por sua qualidade pessoal e profissional. Revelam sabedoria e sensibilidade no trato com todos ao seu redor.
      Muito obrigada pelo carinho e incentivo. Tenha certeza que são fundamentais para me dar alento e seguir em frente.
      Deixo meu afeto com você.

  11. Querida Zilma amiga,
    Quanto mais voce escreve mais voce se revela. A cada texto uma surpresa e uma delícia para se ler. Tadinha da Dna. Silvia, que Deus a tenha, se espantaria com o mundo de hoje. Segue com suas revelações, amiga, que muito nos enriquecem. Um abraço carinhoso

    1. Obrigada, Ariadne, por sua leitura e pelo comentário que revela seu agrado e me incentiva bastante.
      Espero continuar com fôlego para escrever ao lado de pessoas tão competentes que colaboram com o Diário do Engenho.
      Vamos ver.
      Beijo carinhoso.

  12. Realmente Zilma, os dogmas incorporados na infância ficam impregnados mesmo que tenhamos a convicção que eram parte de um sistema ditatorial de falsas verdades apregoados pelos “sábios” da época, ingenuamente nossas almas foram marcadas por teorias que demoraram sobremaneira a ruir conforme a vida nos pregava o verdadeiro sentido das coisas. Realmente Zilma, não existem verdades absolutas e nem sábios na totalidade, tudo é circunstancial e por isso a cada momento de nossas vidas fazemos lindas descobertas, uma delas é de como você escreve com profundidade. Belas crônicas que nos fazem refletir!

    1. Querida Carmen.
      Você sabe que sua leitura e apreciação são muito importantes para mim, por conta do respeito e admiração que tenho pelo seu talento no manejo das palavras. Além disso, sua sensibilidade e a identificação com sentimentos que procurei transmitir, são um importante incentivo para mim.
      Compartilhar esses sentimentos e emoções guardadas, algumas, por tanto tempo, deixa em minha alma um forte sabor de que, apesar de tanto, tudo valeu a pena.
      Parabéns, mais uma vez, pelo lançamento do livro infantil para leitura em Braile. Gostei muito de estar com vocês, o evento estava ótimo.
      Beijo com afeto.

  13. Gratificante ler seu texto. Voltei no ano de 1962 quando iniciei minha jornada em sala de aula.
    É mesmo como vc descreveu. Parabéns, Zilma. Aguardo os próximos “escritos”

    1. Obrigada, Bernadete, pela leitura e comentário.
      Você tem muitas histórias mais do que eu para contar, pelo tempo em sala de aula.
      Estou pronta para lê-las.
      Beijo com afeto.

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