No teu deserto: tanto em tão poucas páginas! Honrando o que no próprio livro é dito (p. 45): “Tudo o que se diz de desnecessário é estúpido, é um sinal destes tempos estúpidos em que falamos mais do que entendemos.”
Estúpido é, também, querer entender ou conduzir aquilo que não se pode racionalizar nem planejar, especialmente o amar. O amor é algo que se tenta compreender desde sempre, mas que, quando muito, só se pode narrar e ouvir ou ler o que é narrado (ainda que em solilóquio), na esperança de agarrar o vivido, em meio a risos e lágrimas, às vezes separados, às vezes misturados.
Partindo de uma imagem, uma história (de amor?):
Foi então que eu tirei a tal fotografia, rodeada de miúdos e sentada no chão, uma criança entre crianças, e, ainda que tantas fotografias felizes mintam, como bem sabemos, ainda que as fotografias consigam suspender a felicidade como se ela fosse eterna – tal qual como nesse instante. E é, hoje, ainda, a imagem mais forte, mais verdadeira, que tenho de ti. Não saias nunca desta fotografia, Claudia! Não saias – tu, não.(p. 104)
Cláudia. Viva na fotografia, quase ao fim do romance. Mas… “(No fim, tu morres. No fim do livro, tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres, eu conto. E ficamos de contas saldadas.)” (p. 9). Desta maneira improvável começa No teu deserto, o final sendo revelado. Mas ao contrário do que costuma acontecer nos casos de spoiler, a revelação convida a fazer o trajeto do início ao fim da narrativa, maravilhosa.
Cláudia é uma garota de vinte anos que atravessa o deserto do Sahara com um brilhante fotógrafo e jornalista com quase o dobro de sua idade, num antiquado jipe UMM Alter II. No atribulado percurso, se conhecem, sem se darem conta do quão profundamente; num liquidificador que agita masculino x feminino, juventude x maturidade, autoconfiança x insegurança, tudo misturado com as naturais dificuldades de jornadas vividas num mundo eivado de riscos e incertezas, decorrentes não apenas de calor insuportável, de frio de congelar, de tempestades de areia, de estradas perigosas, mas também de comportamentos humanos indesejáveis.
Não só o casal é personagem de No teu deserto, também o é o próprio deserto, tanto aquele de areias, dunas e oásis, de difícil travessia, como o outro, dentro do peito, de difícil penetração pelo outro. Desertos perigosos, mas sedutores. Lugares que amedrontam, mas que convidam, apesar de que “já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto.” (p. 105)
É de memória que trata No teu deserto, memória afetiva. Lembranças de momentos que configuram o ponto de uma existência (ou duas?) que desperta o nietzschiano desejo de eterno retorno, ofuscado ou soterrado pela vida quotidiana, no seu inevitável impulso para seguir em frente, de que escapam somente os super-homens.
Depois disso, voltei onze vezes ao Sahara. Nunca como contigo, nunca tão fundo, nunca tão longe, tão perdidamente. Mas voltei, porque o deserto tornou-se quase um vício e a minha íntima religião, o único divino a que prestava contas e onde me reencontrava. E de cada vez que voltei, pensei em ti e pensei como seria bom, incrivelmente bom, voltar contigo. Nessas alturas, como nas outras, eu repetia a mim mesmo: ´Não há regresso. Há viagens sem regresso nem repetição.´” (p. 102)
Valdemir Pires é economista e escritor.
(Livro comentado: No Teu Deserto, de Miguel de Sousa Tavares, publicado pela MEDIAfashion em 2012. Com edições também pela Companhia das Letras e Oficina do Livro).