No banco com Paul Ricoeur

No banco com Paul Ricoeur

Não me lembrava mais como era ir ao banco. Já havia me esquecido de como era ficar naquelas filas intermináveis para fazer um saque em poucos minutos. Confesso que eu também não sacava mais a sensação de ser esquecido numa dessa poltroninhas coloridas das agências, sentado diante de uma mesa onde a gerente toda vez atende aquele alguém que quase por horas tenta resolver um imbróglio que parece abarcar o tempo de uma vida toda. Esta semana, esquecido assim em frente à minha gerente, esperando para resolver uma situação simples – de um boleto que eu me esqueci de pagar – eu me lembrei disso tudo: me lembrei que, felizmente, eu já havia esquecido como era ir a um banco. E me dei conta de que não me lembrava se havia sido o filósofo francês Paul Recoeur quem afirmou que esquecer, em alguns casos (e sob uma determinada ótica), é uma baita dádiva.

Enquanto eu tentava me lembrar também de outras máximas de Ricoeur sobre a estrutura do esquecimento, um senhorzinho de aparência doce e amigável – esquecido ali a meu lado por algum cuidador ou cuidadora – tirou do bolso uma pequena fotografia quase mais velha do que ele e disparou, mostrando-a sem me deixar tocá-la: “são meus bisnetos, Carlinhos e Ana.” Olhei com carinho verdadeiro para a foto e depois para ele – e respondi (apesar de não ter conseguido ver com nitidez a imagem): “são lindos, parabéns”. Sabedor que sou de que nunca fui lá uma pessoa com inclinações paternas, emendei por educação: “o senhor deve ser um bisavô muito feliz.” Ele guardou a foto no bolso da camisa e retrucou: “Avô. São meus netos”, completou. “Carlinhos e Ana”.

Sentado à mesa da gerente, a pessoa por ela atendida seguia desfiando seus problemas – provavelmente esquecida do tempo que, na fila, perdíamos naquela manhã de janeiro. Ao meu lado, o senhorzinho voltava a acariciar a foto que acabara de tirar novamente do bolso. “São meus netos”, disse ele estendendo de novo a foto em minha direção. “Paulinho e Ana” – informou. “São lindos” – eu disse tentando me lembrar ainda de Paul Ricoeur e do que ele afirmava sobre o esquecimento. “O senhor não se esquece mesmo deles”, brinquei. “Jamais. Jamais. Como é que a gente vai esquecer dos bisnetos”, respondeu sorrindo. “O senhor deve ser um bisavô muito feliz”, eu disse por dizer – já entendendo que ele fatalmente não guardaria o meu elogio.

Como eu não me lembrava mesmo do aforismo de Paul Ricoeur, passei a me lembrar de meu avô materno e de como ele, num dado momento de sua idade avançada, de repente se esqueceu de quem era. Me lembrei, depois, de minha mãe – que a vida toda trocou os nomes dos filhos até que, por fim, um dia acabou trocando o dia pela noite, o presente pelo passado, até quase se esquecer, de uma vez, de lembrar o que a vida lhe trouxe de sabores, alegrias e (claro) de tristezas. “São meus netos”, disse o senhorzinho ao meu lado, me mostrando mais uma vez a foto desbotada de duas crianças que, pensando bem, acho que deveriam ser, no máximo, filhos dele.

Querendo me esquecer da recorrência dessa conversa e ousar um interesse real, me aproximei, segurei pela primeira vez a foto em minhas mãos e comentei: “nossa! Mas são muito lindos! O senhor deve ser uma pessoa (desisti de usar avô e bisavô) muito feliz!” A gerente me chamou. Enquanto eu, em pé, me despedia dele, ele me informou de novo, com gosto: “o nome deles é Carlinhos…. e… Carlinhos… e…” Esperei ainda um pouco para ver se ele se lembraria. Por fim, indo em direção à mesa da gerente, arrisquei a distância: “Não seriam Carlinhos e Ana?”. Ele me olhou espantado: “e como é que você sabe?” Ao que respondi: “intuição”, falei sorrindo, “intuição”. Depois, aquela que deveria ser sua filha, neta ou bisneta surgiu para acompanhá-lo para fora do banco, não sem antes me olhar com alguma cumplicidade.

“Lembrou de vir ao banco para acertar a questão do boleto, Alexandre?” – me perguntou a gerente, enquanto eu ainda via o senhor e sua companhia indo embora. “Para lembrar é preciso primeiro esquecer”, respondi (citando, finalmente, a máxima de Ricoeur que tanto havia me fugido à memória). “Para lembrar é preciso primeiro esquecer” – repeti para mim mesmo, e para o pasmo completo da gerente.

 

Alexandre Bragion – crônica publica também em “A Tribuna Piracicabana”. 

(Imagem de capa: filósofo Paul Ricoeur). 

 

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