Nem Ustra nem Delfim: aquele Brasil, nunca mais!

Nem Ustra nem Delfim: aquele Brasil, nunca mais!

Como economista, lembro – de início – de uma afirmativa que um professor repetia com cansativa – mas pedagógica insistência – nas aulas da minha graduação na PUC de Campinas – nos anos 1980: “o médico mata no varejo. O economista, no atacado.” Daí, passo ao ponto que interessa no que se seguirá, reescrevendo a frase do amado mestre (talvez citação de terceiro, de que não me lembro) assim: “o carrasco tortura no varejo. O ditador (com a ajuda de seus economistas), no atacado”.

O regime militar de que o Brasil foi vítima por vinte e um anos, derrotado pelo povo nas ruas (mas não morto, como comprova o fenômeno Bolsonaro), em meados dos anos 1980, lançou mão abundantemente tanto da tortura individual dos opositores ou supostos opositores como da tortura coletiva da imensa maioria da população pobre (urbana e rural) de então. Um homem da caserna e outro da academia são pessoas – e nomes – que se prestam a dar cara ao regime militar de 1964-1984, mais do que os presidentes que quiseram ou aceitaram o papel de ditadores-mor naquele triste período, de Humberto Castelo Branco (1964-1967) a João Baptista Figueiredo (1979-1985). São eles: Carlos Brilhante Ustra (morto e enterrado, a extrema-direita atualmente desejando ressuscitá-lo) e Antônio Delfim Netto (ainda vivo e aparentemente regenerado, apesar de nunca ter manifestado arrependimento).

A Ustra e seus auxiliares e sucessores coube manejar o pau-de-arara, o dispositivo disparador de choques elétricos, o “telefone”, os cigarros levados à boca (acesos) na posição invertida, os instrumentos de extração a seco de unhas e dentes etc. Monstruosidades utilizadas em sessões de tortura cuja natureza José Saramago, numa cena do Ensaio sobre a lucidez, tão bem faz ver, assim: “Posso ir-me embora, Que ideia a sua, homem, não se precipite, primeiro ainda terá que responder à pergunta que lhe tínhamos feito, Qual pergunta, Em que estava realmente a pensar quando disse ao seu amigo aquelas palavras, Já respondi, Dê-nos outra resposta, essa não serviu, Era a única que lhes podia dar porque é verdadeira, Isso é o que julga, Só se me puser a inventar, Faça-o, a nós não nos incomoda nada que invente as respostas que entender, com tempo e paciência, mais a aplicação adequada de certas técnicas, acabará por chegar à que pretendemos ouvir, Digam-me então qual é e acabemos com isso, Ah, não, assim não teria graça nenhuma, que ideia faz de nós, meu caro senhor, nós temos uma dignidade científica a respeitar, uma consciência profissional a defender, para nós é muito importante que sejamos capazes de demonstrar aos nossos superiores que merecemos o dinheiro que nos pagam e o pão que comemos, Estou perdido, Não tenha pressa.”

Afinal, era preciso quebrar sem dó nem piedade qualquer resistência individual ou coletiva à receita (massacrante) de desenvolvimento econômico adotada pela ditadura militar, sintetizada na famosa frase do poderoso Ministro da Fazenda, Delfim Netto: “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Dividi-lo, é certo, entre os que sobrevivessem às dores econômicas (inflação, carestia e fome) e políticas (ditadura e repressão). E, ainda assim, deixando em paz o índice de Gini, ou seja, nada de pensar em políticas redistributivas (às favas com Celso Furtado e escrúpulos sociais!).

Não se negue aos golpistas e ditadores e a seus agentes civis e militares admiração (não digo aplausos) pela concepção e implementação de um projeto (eles o tinham, ao contrário dos disfarçados golpistas mais recentes), sem desviar dos fins (não digo dos tantos interesses inconfessáveis que eles escondiam), combinando meios da teoria econômica liberal e da governabilidade sob suspensão da democracia, muito embora a prática, naquele tempo, andasse em voga, incentivada pelo gigante vizinho que tinha muito a perder caso a União Soviética levasse a melhor na Guerra Fria em curso.

Triste é perceber, porém, que muitos de nós ainda são os mesmos e vivem como nossos avós e bisavós, e não se deram conta de que aquela roupa não nos serve mais – pois já então era apertada e de mau gosto, além de sempre manchada de sangue. Mais triste ainda é perceber que alguns de nós e seus filhos e netos têm saudades de uma tragédia que não viveram.

Mas se tristeza não tem fim e felicidade sim, que aos cabelos desta nos agarremos quando ameaça partir: muitos de nós decidiram a favor da democracia, nos recentes momentos em que ela esteve ameaçada, um bom número com inteligência para saber que o bolo cresce quando é bem dividido (aparente paradoxo da macroeconomia keynesiana), assim como cresce a alma (ou pelo menos não se apequena ainda mais), quando a democracia é, senão amada, minimamente desejada e defendida. Aquele Brasil, para nós, se possível, nunca mais! Que 31 de Março permaneça sendo uma avenida que de vez em quando o riacho soterrado, revoltoso, alaga – que não volte a ser túnel ou ponte para escuros dias e para noites sem estrelas.

 


Valdemir Pires é economista.  É autor, entre outros, dos livros “Finanças pessoais – fundamentos e dicas”, “Orçamento participativo” e “Imagens do tempo”.

 

(Foto: Arquivo Nacional. Domínio público. https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=72670982o:)

 

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