Depoimentos, a fala essencial

Depoimentos, a fala essencial

Falar é essencial. Verbalizar a dor, o trauma, o medo são atalhos para o alívio e até a cura. No Brasil, entretanto, falar sobre o que aconteceu na ditadura não se deu como deveria – penso ter sido resultado de um misto de medo, vergonha, pressões familiares e sociais para que os dramas pessoais raramente se tornassem públicos. Ao contrário do que ocorreu na Argentina, onde as famílias não escondiam a militância dos filhos, onde uma associação de avós ganhou espaço internacional por semanalmente realizar vigílias na praça central de Buenos Aires – com os cartazes dos filhos desaparecidos – dispostas a contar, a falar, a tornar público seus dramas e sofrimentos.

Por isso, até hoje, depoimentos que tenham caráter pessoal são tão importantes. Impossível querermos que jovens entendam, tenham empatia, se envolvam na luta contra a ditadura sem saber o que ela realmente foi, mas contada por aqueles que eles conhecem ou conheceram, que amaram, em quem acreditaram. Histórias de gente com quem já existe uma ligação emocional. Quando contadas por alguém que se conhece/reconhece, deixa de ser história para ser desabafo partilhado, um sinal de confiança e de que o outro merece saber.

Em 2016, o Facebook se tornou um dos espaços mais terapêuticos que se poderia imaginar. Em uma página apenas de mulheres – que falava por um movimento feminino, de mais de 3.5 milhões de adeptas, contra a eleição de Bolsonaro – mais de 500 deixaram seus depoimentos – dos quais alguns foram selecionados e reproduzidos abaixo.

Como se tratava de uma página restrita a seus seguidores, não estaremos reproduzindo nenhum deles na íntegra– todos foram editados – e manteremos o sigilo de suas autoras. Esses depoimentos estão separados por questões que mais se repetiram em falas emocionadas e que permitem um desenho real do que foram os anos da ditadura militar. Falas essenciais por não serem de apenas uma pessoa. Histórias que expressam a angústia de muitas.

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Foi um tempo de medo

“Quando aconteceu o golpe, eu, minha mãe e meu irmãos estávamos fazendo compras. Surgiram vários policiais a cavalo com cassetetes batendo nas pessoas, não interessava se eram velhos, crianças – tocavam os cavalos pra cima e baixavam os cassetetes. Na rua era gritaria, tiros e cacetadas. Naquela noite não pudemos voltar para casa…”

“Aos 8 anos eu morava em um orfanato e éramos convidadas a orar pelos jovens e os líderes que corriam risco de vida. Ouvíamos histórias tristes, vivíamos com medo de tudo e de todos os estranhos ao nosso convívio…”

“Um dia entraram uns homens lá em casa e papai ficou embaixo da cama – e eu e meus três irmãos ficamos sentados em cima. Nunca perguntei o porquê, aqueles homens eram horríveis…”

“A carteira de trabalho era o principal documento da época quando a gente saía. Se alguém fosse revistado por um militar, eles queriam ver o documento e comprovar se você trabalhava ou não. Se não estivesse com a carteira, era levado para a delegacia e, se fosse à note, acabava preso por vadiagem…”

Foi um tempo de perseguição

“Tive uma colega expulsa de uma biblioteca onde trabalhava e da escola onde estudava por liberar livros proibidos…”

“Estava na sétima série de uma escola pública que passou a ser dirigida por um coronel do exército. Os professores de geografia e história eram vigiados. Durante as aulas dessas disciplinas ficava sempre um homem na porta da sala de olheiro do professor…”

“Morávamos no interior de Mato Grosso, num povoado com pessoas pobres, que trabalhavam nas lavouras. Ali vi pessoas fugindo, deixando o pouco que tinham – porque quem tinha terra, ainda que só para sustento, era tido como invasor. Se não saíam, eles sumiam com elas…”

Foi um tempo de miséria

“Sou dos anos 50. No Rio de Janeiro. Tanques de guerra nas ruas, toque de recolher, falta de tudo: arroz, feijão, açúcar, café, leite, carne, enfim, tudo. Íamos para as filas nos caminhões da Cobal, onde cada pessoa podia comprar apenas 1 quilo. E os gêneros alimentícios não eram distribuídos no mesmo bairro. Arroz num bairro, feijão noutro e assim por diante…”

Foi um tempo de violência indiscriminada.

“Vivíamos  num sítio com plantação de laranja. Um dia, policiais passaram por lá e cortaram todos os pés. Minha mãe quis saber o que estava acontecendo, mandaram ela calar a boca, caso contrário seria expulsa da terra…”

“Tinha 16 anos, voltava da escola com dois amigos e fomos confundidos com alguém que acabara de pintar um muro com a marca anarquista. Nos levaram pra dentro do mato. Pensávamos que íamos morrer. Não nos bateram, foram empurrões e muitos xingamentos…”

“A Polícia não respeitava ninguém. Meu tio tinha um bar. As dez da noite eles já estavam lá e expulsavam os clientes a tapas e pontapés…”

Foi um tempo de preconceitos de toda ordem

“Foi em 1970. Ela foi a um terreiro de umbanda para benzer minha prima e no dia seguinte os policiais invadiram a casa dela e reviraram tudo em busca de provas que ela era feiticeira…”

“Meu irmão era homossexual e quando saía nos finais de semana era sempre acompanhado de uma amiga que trabalhava com ele. Saíam de mãos dadas. Ela o protegia…”

“Tinha dez anos quando o diretor da minha escola, que era coronel do exército, olhou pra mim e disse para eu ir pentear os cabelos que ali não era lugar de subversivos. Eu tinha cabelos dourados e cheios de cachos. Saí da sala chorando e sem saber o que era o tal de subversivo.”

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A partir de amanhã, a série especial do Diário do Engenho sobre os 60 anos do golpe começa a publicar depoimentos de pessoas de Piracicaba e região. Se você tem uma história desta época que queira partilhar, por favor, a envie para nós através do email: engenho.diario@gmail.com

 


Beatriz Vicentini é jornalista e coordenadora/editora do livro “Piracicaba, 1964 – o golpe militar no interior”. Em parceria com o Diário do Engenho, editora esta série para o site.

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