Morremos como os Peixes

Morremos como os Peixes

Com todo o respeito a tantos outros municípios paulistas – tão importantes para o estado e ricos também em beleza e cultura –, não é exagero afirmar que a cidade de Piracicaba sempre se destacou no cenário nacional e mesmo internacional por conta da exuberância de seu rio, da singularidade histórica de seu conjunto arquitetônico justamente enraizado à beira rio, pela culinária igualmente ligada à tradição ribeirinha, por suas festas populares e religiosas nas margens do Piracicaba e por tantas outras atrações culturais diversas (como o nosso “piracicabanês”, o XV, a pamonha) e por suas instituições educacionais e culturais de grande expressão – como a Universidade Metodista e a Escola de Música Maestro Ernst Mahle, por exemplo.

Lamentavelmente, um olhar mais atento para toda esse patrimônio histórico-cultural material e imaterial revela que caminhamos a passos largos para um apagamento ou – simbolicamente – para o afogamento que prenuncia a morte de nossa história e cultura. E não se está aqui olhando só e especificamente para a gestão municipal atual. Não se trata disso – apesar de essa gestão estar implicada até a medula nessa derrocada. A questão aqui é chamar a atenção para um olhar mais amplo no qual se vislumbram: a sanha imobiliária (câncer que corrói a cidade desde sempre, que negocia a alma e põe abaixo prédios históricos em troca de arranha-céus – entre outras mazelas), o sofisma do desenvolvimentismo (que aniquila em especial e sem dó a natureza) e a visão imediatista de lucro a todo custo (cultuada desde os pequenos comerciantes aos grandes especuladores locais – que não utilizam qualquer verbete da cartilha da preservação, da sustentabilidade e do cuidado para com a nossa história).

Morremos como os peixes do Piracicaba, como os peixes do Tanquã. Morremos adoçados pelo mel venenoso que nos põe na boca grupos seletos formados por visionários do dinheiro. Como os peixes, como as mais de 20 toneladas de peixes mortos que fedem diante do nariz de toda a cidade, morremos também nós no seco. Por isso, nunca se viu tanto pela cidade o surgimento de grupos populares que – felizmente – se empenham em tentar “salvar” (cada um a seu modo) algo importante de nosso município. E por que isso acontece? É o “Salve a Boyes”, o “Salve a EMPEM”, o “Salve a Unimep”, o “Salve a Pinacoteca” – Deus nos salve!  Isso acontece porque estamos morrendo como os peixes (que se pudessem também se organizariam em um movimento “Salve os peixes”). Só que morremos mais devagar.

Por fim, e se é permitido em um editorial uma citação literária, lembremo-nos do célebre “Sermão de Santo Antonio aos Peixes” – que vem lá do barroco luso-brasileiro de Padre Vieira e que diz: “os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros. Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens”.

Quando Piracicaba se tornar uma cidade feita apenas de prédios de luxo erguidos na beira de um rio morto – é bom que se diga aos nossos vendilhões do templo – não haverá para quem vender mais nada. E os peixes que sobrarem, como nos diz Vieira, só poderão seguir comendo uns aos outros.


 

DIÁRIO DO ENGENHO.

 

 

(O editorial é um gênero jornalístico que representa a posição do veículo ao qual pertence e à de seus editores – não remetendo especificamente a posicionamentos individuais ou particulares).

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