Microensaio sobre as mães e o tempo

Microensaio sobre as mães e o tempo

Poetas marcam a passagem do tempo e os acontecimentos da vida pelas estações dos anos. O fim da primavera é, por exemplo, sinal de transformação e expectativa: alegria que vai se convertendo em passos densos que procuram a sombra sob o sol do verão. State – cantou João Gilberto – sei calda como i baci que ho perduto (verão, tão quente como o beijo que eu perdi), sei pena de un amore che è pasato (cheio de um amor que já passou), che il cuore mio vorreble cancellare (que o meu coração queria esquecer). Depois, desejando na sequência a volta do inverno, registra novamente o poeta a necessidade de interferência das estações do ano na sublimação da paixão sofrida – e se põe a sonhar que tornerà un altro inverno, (voltará outro inverno),  la neve coprirà tutte le cose (a neve cobrirá todas as coisas) e forse un p’o di pace tornerà (e talvez um pouco de paz retornará).

Já Vinícius, ao dar a uma menininha uma flor feita de sentido e amor, revelou: a primavera cheirava toda para mim, só para mim, desnudada, a dançar na manhã azul perfeita, embriagante, toda olhos claros e sorrisos, a abrir com beijos de brisa a boca infantil das corolas nascituras. E dentro da primavera senti um cheiro mágico de Paz. Depois, em poesia dedicada ao amor adulto, pediu à amada: fecha os olhos devagar, vem e chora comigo o tempo que o amor não nos deu, toda a infinita espera, o que não foi só teu e meu nessa derradeira primavera. Beleza, tristeza, dor, ausência, alegria, separação – a poesia é o tempo (time) feito da matéria que o tempo (weather) faz decantar estação por estação. E não foi isso o que nos disse Bandeira? – ao contar que o vento varria os sonhos, e varria as amizades/ O vento varria as mulheres/ E a minha vida ficava/ Cada vez mais cheia/ De afetos e de mulheres.

Talvez por isso Otávio Paz tenha afirmado – em “O Arco e a Lira” – que a prosa é como a marcha (caminha para frente) e a poesia com um mantra, circular e rítmico (como as estações do ano). Não há vida sem ritmo – pois não há o bater do coração sem a condução perfeita do ritmo (disse Otávio Paz). E se a poesia é ritmo, se é circular e cíclica como a estações do ano, também não há vida sem poesia – e sem a cadência contínua da primavera, do verão, do outono, do inverno e da primavera que retorna. Também talvez por isso, o nascimento ou mesmo a morte sejam poeticamente registrados pela inserção ou ruptura da vida desse alguém no ciclo vital e rítmico das estações do ano (registrado, por exemplo, quando dizemos que se completam tantas primaveras).

Emprestando dos poetas a percepção da passagem da vida pela observação das estações do ano, não posso deixar de lembrar que se completam neste mês quatro outonos sem a presença física de minha mãe. Minha mãe faleceu em meio ao começo do fim do mundo – mais precisamente no dia 8 de março de 2020, quando raivava lá fora a peste a concretizar dentro das casas das pessoas (ali trancadas) o medo fatal (lógico e real) à semelhança do que Allan Poe narrou, séculos atrás, em “A Máscara da Morte Rubra” e do que Herzog eternizou em uma das mais dantescas cenas de “Nosferatu”. Quer dizer, minha mãe morreu de causas naturais (para quem quiser conhecer, segue crônica escrita na semana seguinte ao seu passamento: “Em Memória de Minha Mãe”),  quando a Covid-19 trancava o mundo dentro de casa e fazia acumular – nas ruas, hospitais e cemitérios – uma overdose de cadáveres que sequer puderam receber enterro digno.

O outono de 2020 – sob a égide do vírus no ar e do verme no poder – nos trouxe ao menos um clima ameno, sem temperaturas excessivamente baixas. Poucas pessoas puderam estar presentes ao velório de minha mãe (o qual não durou mais do que duas horas) e a seu rápido enterro, pois (para além de estarmos obedecendo à norma vigente à época) simplesmente não havia sentido estendermos qualquer cerimônia fúnebre ante a perspectiva mundial que colocava a todos e todas sob o risco iminente de morte. Um mês depois, me lembro como fosse hoje, Andrea Bocelli cantaria “Amazing Grace” – num domingo de Páscoa – em uma praça, em Milão, absolutamente vazia (mas que contou com 2,8 milhões de espectadores simultâneos no Youtube). Era outono no Brasil – e parecia ser um dos últimos (como foi) para parte da humanidade.

Após a morte de minha mãe o inverno sucedeu o outono. Depois, veio a primavera, outro verão e outro outono. A vida seguiu fluindo-se com as estações. Em princípio, a pandemia (e digitar essa palavra dá arrepios) parece que disfarçou a nossa perda familiar. (Ainda naquele ano terrível, diga-se, outra perda profunda iria também nos atingir meses depois – em pleno fim de primavera – mas é assunto para outro microensaio). Ver as estações passarem estando-se dentro de casa ou saindo-se pouco ou eventualmente à rua trouxe também uma sensação de excepcionalidade que de alguma forma – ao menos a mim – parece ter ajudado a abafar a ausência materna. E o ciclo seguiu. As estações se seguiram. A vida (para a maioria) resistiu. Quatro outonos se passaram.

Como escreveu Mário de Andrade, existirem mães, isso é um caso sério. Quer dizer, não há outonos que se sobreponham à ausência delas. Por outro lado, e muito particularmente, hoje não se converte em mim ausência em tristeza. Explico. Sei que Freud não poderia usar minha mãe e a mim como modelo mais que perfeito de sua descoberta psicanalítica, é claro. Mas sei também que a ausência materna, de algum modo, enseja uma orfandade que a ausência paterna (por mais que sofrida) não consegue tão plenamente ensejar. Explico de novo. A força materna, mesmo ausente (por seus diversos motivos) é elemento presente no tempo de nossa existência. Estejam elas neste plano ou em outro, estejamos ligados a elas ou delas separados por causas mil (ou saibamos quem são ou não), há na maternidade uma poesia que só as estações do ano conhecem.

As mães não passam, não morrem, não desaparecem, não se ausentam de nós. E há mães de todos os tipos. Há mães naturais, não-naturais, biológicas, cronológicas, eventuais, de empréstimos, de coração. Há mães que são invernos e frias. Há outras que aquecem o verão. Há outras ainda que são floradas rápidas de primavera, outras que outonam o coração. Há as que se abrem como o sol, as que adormecem com a lua. Há as que conhecemos ou não. As mães, como as estações e a poesia, simplesmente são. E contra isso nada podemos nós (eis aqui, por fim, explicitada, a chave poética e existencial deste miniensaio). As mães vivem em nós (queiramos ou não) sob qualquer alegre ou dolorosa estação.

Neste outono, de clima outra vez tragicamente atuante – em que a tristeza por mais uma tragédia climática nos prostra diante do absurdo da vida –, a alegria de celebrarmos o dia das mães (entre mães ausentes e presentes, entre mães-memória, mães-ilusão e todo forma de compreensão da vida materna) parece outra vez menor. É pena. Mas também é esperança. É exercício de força para se contemplar a existência da vida e da natureza – da natureza da mãe e da mãe natureza. Afinal, com escreveu Drummond, juntando as mães e o tempo: Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não apaga quando sopra o vento e chuva desaba, veludo escondido na pele enrugada, água pura, ar puro, puro pensamento. Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio. Mãe, na sua graça, é eternidade.  Porque mãe é ciclo – emendaríamos o poeta – é tempo presente que (se vai e volta) como as estações nunca de todo passa.


Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho. 

 

 (Foto de capa: fragmento do quadro “Mãe e Filho”, de Klimt)

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