A Capoeira Angola é, sem dúvida, uma das grandes e preciosas riquezas da cultura afrobrasileira. Diz muito sobre resistência, identidade, genialidade e o processo de ressignificação cultural que a população negra forjou no duro contexto da diáspora na América, particularmente no Brasil. A violência imposta pelo tráfico Atlântico, na perversidade da escravidão colonial, ceifou milhares de vidas negras e vislumbrou promover um brutal etnocídio, na estúpida pretensão de destruir toda uma cosmovisão africana. Mas mesmo diante de tantas e inimagináveis formas de violências e opressões a população negra e afrodescendente resistiu ao cativeiro, com coragem, força, criatividade e muita esperança. A Capoeira Angola é a brado de resistência, que ecoa, retumba em terra estranha, na potência humana da existência do povo preto.
O Projeto de Pesquisa e Extensão Capoeira, Direitos Humanos e Educação Antirracista, desenvolvido em diálogo e interlocução entre os campi Piracicaba e Capivari do Instituto Federal de São Paulo, tem permitido uma interessante e muito profícua imersão no vasto e complexo universo da Capoeira. O Projeto, por meio de pesquisas, leituras, entrevistas, estudos e rodas de vivências de capoeira, tem buscado identificar e compreender as possibilidades da Capoeira, destacadamente as representações simbólicas da Capoeira Angola, para a construção de uma educação comprometida com dinâmicas de emancipação, radicalmente antirracista.
No âmbito das atividades do Projeto, as pesquisas sobre a Capoeira inevitavelmente acabaram por conduzir e apresentar o Mestre Zequinha, guardião maior das tradições da Capoeira Angola no território de Piracicaba e região. Quem já teve o privilégio e a grata alegria de ver e ouvir Mestre Zequinha, com sua fala suave e generosa, mas tomada pela força de tantas memórias e plena em sabedoria? Quem já teve oportunidade de estar em uma Roda de Capoeira com esse emblemático mestre de Capoeira Angola? Mestre Zequinha é um autêntico griô, aquele que guarda e transmite, com a genuína autoridade da tradição e da ancestralidade, a história perdida e recuperada da população negra e afrodescendente na diáspora, sob o prisma da Capoeira.
Com a simplicidade e profundidade de um conhecimento que bebe diretamente na fonte da sabedoria esotérica da Capoeira, Mestre Zequinha ensina, citando e reverenciando seus Mestres, que há um vínculo profundo entre a Capoeira Angola, com todos os seus ricos símbolos e ritualidade, e a tradição religiosa do Candomblé. Em uma hermenêutica interessante e cheia de sentido, Mestre Zequinha explica que a Capoeira Angola e o Candomblé são faces de uma mesma e fecunda tradição, que remonta e remete às experiências mais genuínas e verdadeiras de Mãe África. Com sabedoria rara, Mestre Zequinha faz de sua trajetória pessoal um caminho de aprendizados. Mesmo diante das situações mais difíceis e desafiadoras existencialmente, como um episódio de racismo rasteiro, Mestre Zequinha não se abate nunca, revelando uma capacidade de refletir, ponderar e compor lições, que apontam para uma vida plena em dignidade, generosidade e altivez.
Mesmo após um ano de atividades, o Projeto de Pesquisa e Extensão Capoeira, Direitos Humanos e Educação Antirracista ainda tem muito o que investigar e produzir acerca dos valores contemplados nas tradições fecundas e polissêmicas da Capoeira Angola. Para o recém consagrado Mestre Tintin, a Capoeira Angola fala sobre a própria vida, abordando a questão da busca por um sentido existencial mais profundo. Mestre Tintin enfatiza que a Capoeira Angola é também um processo rico, intenso e genuíno de humanização. Para o Mestre Tintin, em uma alusão à ética banto do ubuntu, a Capoeira tem a força de romper com todas as formas de preconceitos, ensinando a dimensão do acolhimento, a partir da compreensão de que todos somos partes de um coletivo, por isso deve estar presente no cotidiano das escolas, educando os estudantes para a ética da convivência na alteridade.
Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal campus Piracicaba.
(Foto: Mestre Zequinha/página pessoal)