Não sou um bom exemplo de leitor.
Quando vejo as pessoas falando que leem vários livros por mês ou por semana, fico complexadíssimo.
De fato, leio muito pouco. E demoro muito para terminar um livro.
É verdade que tenho um motivo para isso: de fato, nos últimos anos, dez ou doze anos, todos os livros que li foram livros que traduzi.
Ou seja, eu leio na velocidade de quem escreve. E ainda tenho que adaptar a língua em que foi escrita a obra – inglês, francês ou espanhol – para o português brasileiro.
Como são, na sua quase totalidade, obras de Teologia, é preciso um cuidado especial sobre a expressão de certas ideias.
E frequentemente me deparo com termos em grego (em latim, menos) que exigem verdadeiras pesquisas para chegar ao seu significado exato.
Sendo assim, demoro meses para concluir um livro de, digamos, 300 páginas.
Por outro lado, às vezes traduzo mais de um livro ao mesmo tempo, o que complica ainda mais as coisas.
Mas, independente da quantidade de leitura, afirmo, sem falsa modéstia, que a qualidade dessas obras compensa amplamente o número.
Mas é preciso esclarecer um ponto a esse respeito: quando falo de obras de Teologia, estou me referindo, em primeiro lugar, aos primeiros autores cristãos que versaram sobre o assunto, desde os Padres do Deserto, a partir do século III, até os mais recentes, já no XX, representantes da escola russa por exemplo (meus preferidos).
Nada de “auto-ajuda cristã”, nem do pietismo meloso de alguns padres, e menos ainda dos delírios neopentecostais que abundam nas livrarias.
A Teologia Ortodoxa – porque é disso que se trata – é de uma profundidade surpreendente, em especial para quem está acostumado com os autores romanos (embora também os haja de boa qualidade).
Resulta daí que minha visão de mundo acaba sendo moldada por uma busca de transcendência que transforma a realidade e sacraliza nossa experiência existencial, o que inclui todas as relações humanas e inclusive a natureza.
Longe de acumular certezas sobre o mundo, acabo por colecionar dúvidas a respeito de tudo – como dizia a Sócrates, só sei que nada sei.
É o contrário do efeito Dunning-Kruger, em que a segurança da pessoa aumenta na medida de sua ignorância a respeito de certos assuntos. E olhe que sou ignorante em quase tudo!
Esse efeito, aliás, é o que presenciamos nesse nosso sofrido Brasil, e que resulta da aplicação sistemática, ao longo de séculos, de políticas de deseducação do povo, relegado a receber uma instrução mínima e acrítica, que desemboca hoje em dia no desastre apontado pela recente pesquisa a respeito dos hábitos de leitura do brasileiro.
A quem interessa essa ignorância? Podemos inferir que existe um desígnio malévolo que busca manter a população nas trevas, para melhor manipular os rumos da sociedade brasileira?
Confesso que me sinto desanimado, quando observo o nível a que chegamos. E tenho para mim que essa tábula rasa do saber foi cuidadosamente construída, com intenção e método, a partir de 2013, aproveitando-se, naturalmente, da histórica fragilidade intelectual do brasileiro médio.
O dado da pesquisa que aponta que 22% das livrarias no Brasil são religiosas, para mim, é muito assustador – e olhe que essa porcentagem não considera as prateleiras religiosas que existem nas livrarias ditas “laicas”.
O mingau religioso servido nessas literaturas envia o leitor a um pântano mental, no qual se movem, como espectros do pensamento, personagens do Antigo Testamento, a repetir palavras de ordem que remetem a um judaísmo mal digerido, ou às campinas onde cavalga um otimismo pietista sem nenhum contato real com o Espírito. De um lado como de outro, tudo isso acaba em sectarismo, o que é o contrário do que foi proposto por Cristo.
Em tempo: sou cristão, ortodoxo, e acredito firmemente nas realidades estabelecidas na doutrina de Cristo, mas, exatamente por isso, recuso-me a me colocar como arauto das verdades divinas, pois tudo o que aprendi me levou, em primeiro lugar, a questionar a mim mesmo como religioso, e o próprio papel da religião no mundo.
E olhem que me amparo em São Máximo o Confessor, em Orígenes, em São Gregório Palamas, entre outros, e ainda nos modernos Lossky, Florovsky, Berdiaev, Romanides, Yannaras.
Não discuto sobre a fé, e muito menos sobre a falsa polarização entre ciência e religião, cujo antagonismo simplesmente não existe.
Por esses motivos, me preocupa mais o ávido leitor religioso do que o negligente leitor ateu.
Pois o ateu, quanto mais não seja, ao menos vive nesse mundo, enquanto que o religioso se esforça para criar uma realidade paralela, em que os conceitos mal aprendidos de um Cristianismo distorcido lhe garantam um lugar no Paraíso. Sectário, naturalmente.
Nem que, para isso, ele tenha que negar o que ulula diante de seus olhos, a saber, que a humanidade é feita das diferenças entre os homens, e que nosso destino derradeiro – quer retornemos ao pó indiferente, quer nos caiba reviver nas esferas, de camisola e sandália – não depende, em absoluto, das fórmulas criadas pelos homens para justificar, cada qual, sua própria insuficiência.
Porque, em última instância, vai valer o que tão bem traduziram Lennon e McCartney, que de teólogos não tinham nada, mas eram capazes de enxergar à frente: “in the end, the love you take is equal to the love you make”.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.