Memórias e trajetórias.

Memórias e trajetórias.

E tempo de incompetência política, dedico este artigo – em forma de relato memorialista – a um grande estadista brasileiro, preso injustamente há mais de um ano.

 

Corria o ano de 2008 e eu presidia a Agência Nacional de Águas (ANA) – já no segundo mandato. A todo vapor, a entidade se empenhava em produzir diagnósticos, planos e projetos de recursos hídricos sobre as principais bacias hidrográficas brasileiras. No final do ano anterior, havia sido concluído pela equipe técnica um estudo muito especial atinente ao planejamento estratégico de recursos hídricos das bacias dos rios Araguaia e Tocantins. Tal trabalho, feito com muito esmero, descortinava enormes oportunidades para intervenção governamental planejada – numa região de enormes possibilidades sob a ótica dos usos múltiplos e sustentáveis das águas.

Meus colegas de Diretoria e eu sabíamos das dificuldades para transformarmos um trabalho dessa natureza em políticas concretas de intervenção, dada a concorrência com outras políticas públicas relevantes de interesse do governo, mesmo no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA) ao qual a ANA estava institucionalmente vinculada.

Ocorreu-me, então, tentar levar o referido plano para a apreciação direta do presidente Lula. Como furar o bloqueio e inserir uma audiência na agenda do presidente, ainda mais considerando que se tratava de um pleito emanado do segundo escalão governamental? Passei a pensar sobre qual seria um bom contato no entorno do gabinete presidencial com o qual eu pudesse dialogar e tratar da possibilidade da audiência. Sim, havia um contato: tratava-se de César Álvarez, Assessor Especial da Presidência, com quem o presidente Lula despachava praticamente todos os dias.

Cogitei, assim, convidar o César para vir à ANA, de modo que pudéssemos lhe fazer uma apresentação do plano. Todavia, não era uma empresa fácil – dado que César era um assessor muito assoberbado pelas suas atividades cotidianas. Pedi ao Horácio, meu chefe de gabinete, para que envidasse esforços para trazê-lo à ANA e com disponibilidade de tempo suficiente para ver a apresentação que lhe faríamos. Depois de várias tentativas, finalmente César acedeu e encontrou uma brecha em sua agenda – dispondo-se a nos ouvir.

Feita a apresentação na ocasião aprazada, César gostou da proposta e se convenceu de que o presidente Lula iria igualmente gostar. Não garantiu nada, mas se comprometeu a tocar no assunto com o presidente na primeira oportunidade. De minha parte, apesar da lealdade do César e a certeza de que ele cumpriria o prometido, não alimentei qualquer otimismo sobre a audiência.

Os dias se passaram e o assunto foi arrefecendo até não constar mais das minhas expectativas. Um belo dia, entra o Horácio – esbaforido – no meu gabinete, com um sorriso aberto de alegria. “Machado, o presidente Lula vai nos receber!” Meu Deus! E agora? Ao dar a boa nova, César advertiu que encontrara uma brecha meio apertada na agenda do presidente e que não era garantido que daria certo. No mínimo, havia uma grande chance de tomarmos um senhor chá de cadeira, pois a agenda presidencial costumava ser cheia e atrasar muito. Que se danasse o atraso, que se danasse o risco! Valia a pena corrê-lo.

A audiência foi agendada para as dezesseis horas, se não me engano, da quinta-feira anterior ao carnaval daquele ano.

Lá estávamos, naquele dia, na hora marcada, Horácio, João Lotufo (superintendente de planejamento da ANA) e eu, aguardando a audiência na ante-sala da Presidência. Lembro-me que fora convidada por mim, e também se fazia presente a então secretária executiva do MMA e futura ministra, Izabella Teixeira.

Os minutos foram se passando e, de vez em quando, o César Alvarez aparecia para nos dizer que a agenda do presidente, como previsto, estava atrasada e nos pedia que tivéssemos paciência. Lá pelas tantas, poucos minutos antes das dezoito horas, o César voltava com cara de desânimo a nos dizer que não seria possível o presidente nos receber, pois ele estava reunido – “extra-agenda” – naquele momento com governadores do Nordeste e não havia previsão de tempo para o encerramento da conversa. Mas, para nosso alívio, César conseguiu nos encaixar para o mesmo horário no dia seguinte, sexta-feira.

Horário ficou decepcionadíssimo porque não poderia participar da audiência na sexta, em razão de ter programado viajar para Catanduva, com a família, onde passaria o carnaval. Janet – minha companheira – e eu tínhamos programado passar o carnaval em Salvador, a convite de um casal de amigos baianos. Janet embarcou na própria quinta-feira e, por sorte, eu consegui reserva aérea na sexta à noite. Portanto, calculei que haveria tempo suficiente para conciliar as coisas.

Na sexta, voltamos ao Palácio cheios de confiança – mas sem o Horácio, evidentemente. De cara, o César Alvarez nos recebeu e nos acalmou dizendo que a agenda estava normal e que era fora de dúvida que o presidente Lula nos receberia. O que queria dizer “normal” na agenda do presidente? Eu já sabia, de sobejo, que as conversas com Lula costumavam se arrastar, seja porque ele gosta de prosear, seja porque, mesmo do alto de sua autoridade, não praticava a indelicadeza de encerrar abruptamente as conversas com seus interlocutores. Eu sabia disso das vezes em que ele esteve em Piracicaba, antes e depois de se tornar presidente (em outra hora conto sobre uma visita que fez à cidade, para dois compromissos: inaugurar uma unidade industrial da Dedini e participar de uma solenidade na Esalq. Nessa ocasião, enquanto eu quase enlouquecia com os atrasos, temeroso pelos mal-estares, Lula encarava tudo com a maior naturalidade, sem jamais perder a calma e a paciência).

Pois bem, Lula entrou na sala de reuniões onde já o esperávamos para a audiência, às dezoito horas – com duas horas de atraso, portanto. Estava, como se diz, “acabado” pela longa jornada de trabalho que começara desde a manhã daquela sexta-feira. E, com uma humildade que o caracteriza, foi logo dizendo, depois de me cumprimentar e me abraçar: “Machado, você acha que meia hora de conversa está bom?” Fiquei estupefato. Imaginem: o presidente perguntar para mim se meia hora de reunião, comigo, estava bom! Respondi que era mais do que suficiente e agradeci a gentileza de nos receber.

Depois das apresentações e dos cumprimentos entre os presentes, pedi para fazer uma pequena introdução sobre o que nos trazia àquela audiência: a apresentação do plano anteriormente aqui referido – e, rapidamente, passei a bola para o Lotufo, que era quem ficara encarregado de fazer a apresentação técnica, com a orientação de que o fizesse da forma mais sucinta possível, para atender ao solicitado pelo presidente.

À medida que a apresentação transcorria, Lula ia se mexendo na cadeira e, interrompendo Lotufo, fazia uma série de perguntas. Estava encantado com o que estava vendo e ouvindo sobre as amplas possibilidades de desenvolvimento sustentável nas bacias estudadas – e não escondia o seu encantamento.  Mas cadê a canseira do presidente? Encerrada a apresentação de Lotufo, que tomou uns vinte ou trinta minutos, para atender o limite de tempo solicitado, o presidente Lula pediu para um assessor que chamasse Dilma Rousseff – então Ministra Chefe da Casa Civil. Assim que ela entrou na sala, o presidente exclamou: “Dilma, você precisa ver isso! Impressionante o trabalho que a ANA elaborou, precisamos mostrá-lo para outros ministros.”

Seguiu-se uma conversa sobre hidrelétricas, uma vez que na proposta apresentada, a ANA não recomendava a implantação desses empreendimentos no Rio Araguaia, sob a alegação de que se tratava de um rio ambientalmente frágil, ao contrário do Rio Tocantins – já bastante antropizado, potencialmente navegável e com várias hidrelétricas instaladas. Oriunda do setor elétrico, tendo sido Ministra de Minas e Energia e profunda conhecedora do tema, Dilma, ao seu estilo, não escondeu sua divergência. Aí Lula disse: “Olha só, Dilma, o trabalho da ANA está correto e enquanto eu for presidente não se implantará hidrelétrica no Rio Araguaia!”

E o debate sobre a apresentação do estudo da ANA seguiu animadamente e o tempo foi passando, sem que o presidente perdesse o ânimo para conversar, perguntar e dar pitacos.

Já nos arredores das vinte horas (com duas horas de audiência contra a meia hora prevista!), tomei a iniciativa de propor que encerrássemos a reunião. Duas aflições me assaltavam: em primeiro lugar, não queria abusar da generosidade do presidente e estava realmente preocupado com a sua exaustão; e, depois, convenhamos, comecei a achar que iria perder o avião para Salvador.

O presidente concordou com minha proposta, não sem antes reafirmar que gostaria que voltássemos para mostrar o plano para outros ministros.

Fato é que, em verdade, não mais precisamos voltar para essa finalidade. Mas aquele dia, em minha trajetória frente à ANA, foi daqueles que não esquecerei jamais.


 

 

José Machado foi deputado estadual, deputado federal por dois mandatos e prefeito de Piracicaba por duas gestões.

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