Je ne me souviens pas les routes,
la recherche et la musique.
Je ne me souviens pas le notes
de la chanson que je me suis perdu.
(A.B.)
Acho que eu ainda me lembro. Acho. Esse negócio de memória é assim. Je me souviens, Je ne me souviens pas… Não exatamente como Proust. Ou melhor: não como Swann, pelo caminho. Não como a sentir as papilas num amargor siciliano: o chá com o passado. Não como a ouvir melodias que nunca terminam ou se resolvem. Não. Não ouço soar nada na mente, nem há nada no meu interior a latejar sensações ou lembranças. Nada de nostalgias de almanaque piegas também, nada de forjadas recordações plásticas e escamosas. Nada. Apenas acho que ainda me lembro – acho. Ou construo o que quero lembrar – porque lembrar também é construir. E então me embrulho – leve – num estomago breve, menor do que tenho a guardar ou a sentir.
Às vezes penso que vejo uns olhos. Outras, umas cores. Há carrosséis de dentes e sorrisos que sorrateiramente me mordem os dedos e me rasgam a mão. Às vezes me lembro das coisas pelo antebraço ou pelo pescoço – estranho? Mas há certamente em mim um tônus de memória que treme todo quando o que crio de recordação surge como se fosse, erroneamente, lembrança. Às vezes não sou mais eu que me venho à mente. Às vezes sou Swann (agora sim, confesso), a esperar na angústia a luz que penetra por debaixo da porta do quarto quando se põe a madrugada. Às vezes sou eu a ver, doente, a salvadora e esperançosa chegada da manhã (na cabeceira da cama o livro que me confunde os sonhos – rêverie, songerie – e faz amontoar no corredor malas cheias de ideias).
Fecho os olhos ao balanço de um vagão. Mas nunca estive num trem. Nunca andei em qualquer máquina movida a vapor. E veja que o vapor empana a vista, encobre os sentidos. Que me lembre, nunca sequer andei por estações, por gares charmosas ou não. Mas saiba que guardo com detalhes a vista de uma plataforma: a da Bête Humaine (história que vi e vivi, a medo, quando me dava a juntar palavras mal traduzidas de uma língua em sonora-canção). Um homem abrutalhado sentado à mesa, o pãozinho pobre, a manteiga rançosa ao lado de uma garrafa de vinho – e o mundo a cozer-lhe o espírito, a lhe por nas costas asperezas de pés feitos de garras. Ainda me lembro bem, eu acho. Havia força e desejo – havia acusações, crimes e mentiras. E tudo era meu, tudo era tão diferentemente meu que – ainda hoje – não entendo como Zola conseguira descrever em detalhes tão íntimos o que só estava dentro de mim.
Também Valéry roubou-me uma evocação certa vez: uma cena mais que secreta a sobrevir remota e arquediscreta à tela dos meus desejos (“Te pas, enfants de mon silence, saintement, lentement, placés”). Como pode ele? Como pode o poeta expor minhas recordações tão particulares? Com que direitos trouxe a público meus prazeres tão íntimos? Acho que me lembro bem: foi num dia de viagem – numa dessas viagens rápidas e raras em que a gente vê o mar como de passagem. Não havia tempo nem possibilidades. Não havia mesmo o que dizer à hora da partida. Apenas a cena dos passos de Valéry cabia no meu mural, como num livro (un livre de pouche, avec mon couer ). E a história virou memória e fez-se invenção. Tudo criação. Tudo invenção – que me lembro. Acho.
Apesar de crer em Paul Ricouer – e de rezar para ele todas as manhãs – uma menina de tez morena e cabelos pretos às vezes me vem à mente a me lembrar que minhas recordações, todavia, não podem ser assim tão afrancesadas. E ela, ao apertar os ossos de minha cabeça entre as suas mãos, espreme também minhas últimas lembranças. Temo revê-la sempre – porque sei que ela me visita quando menos espero: enredo que não domino, imagem que não quero. Ante sua terrificante aparição, espero o esquecimento necessário à sobrevivência: desejo a demência confortadora dos enganos, a estupidez acolhedora dos que erram e padecem por seus erros. Mas o caminho de Swann não deixa escolha nem vestígios. E tudo, de repente, me toca com mais natureza e realidade.
Na verdade, acho que não me lembro mais de nada. Acho. Esse negócio de memória é assim. Je me souviens, Je ne me souviens pas… A gente nunca se lembra mesmo do que aconteceu. Talvez nem Proust pudesse dizer, claramente, o que seria a memória. Talvez umas madelaines, talvez um chá de hibiscos pudessem reviver situações nunca vividas. Não será assim? Acho que me lembro. É o livro. Acho que me lembro bem. A Côte, agora. Adiante! Que a melodia agora toca firme e forte – como nunca antes a ouvi.
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Alê Bragion é editor do Diário do Engenho.
Lembranças – ou não lembranças? – de uma tarde com deliciosa inspiração francesa.
Imaginação e memória estimuladas – impossível em algum ponto da crônica não me lembrar de algum momento – ou sensação – que achava completamente perdido na vida. Perdidos e achados. Buscas. Tempo perdido?
Sinto que não.”… a melodia agora toca firme e forte – como nunca antes a ouvi.”
Amei, Alê.
Que bom que voltou seu forte texto, sua delicada inspiração.
Abraço.