“Sky is the limit” – o céu é o limite –, cantava Notorious Big, um rapper americano negro, enorme. “Grab my gun” – pegue meu revolver –, também era uma música dele. Nas duas músicas, em especial, ele diz que tudo é possível e que é necessário sustentar seu sonho – o céu –, seja lá como fosse – até fazendo uso de um revólver. O “Grande Notável” tinha, claro, muitos inimigos, sob os quais ele exercia sua influência e sua opinião.
Qualquer leigo que tenha assistido à Music Television (MTV) nos anos 1990 sabe que fim levou o grandalhão. Em uma das brigas mais famosas da história da música, Big se estapeava – figuradamente – de todas as maneiras possíveis com outro rapper, 2Pac Shakur, igualmente reconhecido no cenário do rap mundial até hoje. Suas armas para a briga variavam entre a imprensa, letras de músicas, discursos em shows e, enfim, armas. Ambos morreram, foram assassinados no mesmo ano.
Embora até hoje ninguém saiba “quem é o pai da criança”, o clima de tensão que o assunto é posto à mesa no showbiz americano é nítido. Ambos tinham suas ideias, suas raízes. Mas os dois mestres de cerimônia (MC’s) também tinham uma maneira de manter essas ideias e opiniões. O fim fatídico não impressionou nem impressiona ninguém que conheça um pouco sobre o que era o rap e as periferias dos Estados Unidos entre 1980 e 1990.
Ninguém se espanta. Isso porque todo mundo, até mesmo a gente, tupiniquim, aprende desde cedo a não levar briga para casa. Clint Eastwood, famoso ator do cinema western que resistiu aos tempos modernos de Hollywood, disse há alguns anos, em uma entrevista à revista Rolling Stone, que era muito engraçado como o cinema tratava inversamente a história entre o bandido e o mocinho.
Segundo o escritor e diretor de “Entre meninos e lobos”, “Menina de ouro” e “Grand’Torino” – no qual ele atua como protagonista – hoje se tem a ideia de que é bonito fazer o mau e não esperar pelas consequências. Na mesma entrevista Clint lembra como as coisas eram mais duras em sua juventude, o quanto era cobrado dos garotos a responsabilidade por seus atos. Como traduziu o redator da revista, Eastwood afirmou que hoje as pessoas estão imersas na “bundamolagem”.
Meu pai me chamaria de bunda mole se eu provocasse alguém e não aguentasse as consequências. Meu pai me chamaria de bunda mole se eu quisesse salvar o mundo e não aceitasse que, primeiro, eu deveria arrumar meu quarto (ele já me chamou mesmo de bunda mole por isso). Mas meu pai também diria que sou um fraco se eu me calasse perante uma ameaça, me omitisse. Veja só que coisa. Até hoje penso realmente que você pode fazer o que quiser, mas deve saber o que está fazendo, com quem está fazendo, se vai arranjar um problema e, principalmente, se você realmente consegue arcar com as consequências.
Quando pensamos em passar para frente toda e qualquer ideia, hoje, 2015, aqui no Brasil, devemos nos preocupar com uma série de coisas. Qualquer um precisa fazer isso para evitar uma proeminente morte social – pena leve para um crime como ofensa à religião, aos sexos, a liberdade de ir e vir, às raças, as culturas, aos sotaques. Porque, aqui no Brasil, tudo é e sempre foi “mais leve”.
Em vários países do mundo, as reações podem ser variadas quando se tenta impor, compartilhar, ressaltar, frisar, relembrar, apontar, indicar, questionar uma opinião. Na França, em específico, em sete de janeiro deste ano, a reação a uma dessas tentativas (que na verdade é parte do cotidiano no país) foi muito pior do que a esperada.
As vítimas do caso Charlie Hebdo não fizeram por merecer, porque nem toda opinião surge para derramar sangue (sim, mas há opiniões que querem). O impresso com as charges satirizando Maomé merece sim as condecorações, claro, de uma imprensa incisiva, taxativa, subversiva. Eu queria ser aqueles caras. Só não queria estar na tumba deles agora, vendo toda essa turba racista, xenofóbica e reacionária que surgiu após o incidente. Isso porque eles sabiam o que estavam fazendo, e acredito que não era pena que eles gostariam que sentíssemos deles.
Sem pena, sem remorso; é assim que pensa um soldado em um campo de batalha. E quando você trava uma briga cotidiana contra um inimigo em comum com mais da metade do planeta, apesar de estar do lado da maioria você precisa, sim, dormir de olhos abertos. Porque até quando você faz o certo, até quando você é o melhor da classe, o melhor no trabalho você está, sim, oprimindo alguém – e o que acontece quando você se destaca e não sabe se proteger? Puxam seu tapete.
Os editores, redatores e chargistas do Cherlie sabiam que não estavam chutando um defunto. Até por que não ia ter graça alguma tirar uma onda com a cara de quem não pode se defender. A taxação da charge de Maomé era política, mas o homem era um ícone religioso que, por sinal, representa a base constitucional – se é que existe constituição nesses lugares –, em vários países do oriente médio. Quando seu inimigo é um santo e é um político ao mesmo tempo você está mexendo com armas e passionalidade. As duas coisas são potencialmente letais quando separadas, juntas, são uma napalm death de louvor e sangue.
De certo que o Estado Islâmico, principal acusado pelo atentado, tampouco representa todos os religiosos árabes que fazem suas preces e adorações a Maomé. Mas, de qualquer maneira, quem está pagando a conta são justamente os muçulmanos. São os familiares do Zidane, que nunca fizeram piada com ninguém, são os familiares do Benzemá, que também nunca curtiram com a cara dos cristãos alucinados do Brasil e de lugar algum e que também nunca mataram ninguém. São os conterrâneos, do conterrâneo do “primo do meu primo, que é irmão do primo do meu amigo”, que nunca se quer pisou em nenhum país do oriente médio. São eles que estão pagando a conta por essa imposição de opinião.
Ninguém nunca limitou o jornal, ninguém nunca conseguiu limitar o humor de nenhum meio de comunicação. Em 99% dos casos, se há algum limite para a sátira, para imposição de opinião, isso é feito sempre como um ato de autocensura. Isso por que ninguém procura saber qual é o limite, mas procuram saber apenas se vale a pena. Valeu a pena publicar a Charge de Maomé, adorado pelos bons e adorado pelos “maus” árabes? Valeu a pena morrer por isso? Não há mais nenhum outro problema para ser discutido?
Foi o que pensei. Existem centenas de milhares de coisas com o que se preocupar na União Europeia em 2015. Austeridade, desemprego, quebra de bolsa, enfim. Mas tinham que salvar o mundo publicando uma charge. Fizeram bem, fizeram certo. Mas não conseguiram se sustentar. O que eles esperavam como moeda de troca? Uma charge com um punhado de corpos sangrando no chão e Jesus olhando rindo? Eu sinceramente não esperaria por isso.
E em meio a atual situação econômica e política global, em um país como a França, cheia de gente “marrom” – engraçado que isso é o que dizem dos nortistas em São Paulo, mas preferi traduzir “packies” dessa maneira, que é como os neonazistas franceses dos anos 1980 chamavam os árabes, e talvez chamem até hoje, seria burrice esperar flores em troca de tapas. Não há limites para o humor, há limites para a burrice.
Bansky, artista de rua mais reconhecido como grafiteiro Cult da Inglaterra, cita em um livro sobre suas obras que “é mais fácil pedir perdão do que permissão”. Pois bem, vão lá e façam, mas é preciso dar um jeito de pedir perdão depois. Ninguém peca ao tentar dar um passo maior que a perna, mas o choro é livre. Eu nunca mataria ninguém por uma desavença religiosa transcendental, mas se morrer como um homem é o preço da guerra, então, ao menos, os mortos estão felizes, se a intenção deles em enfrentar um opressor era realmente sincera.
Portanto se o céu é o limite, pelo menos na França, é melhor pensar em revólveres quando a ideia for insultar algum ícone religioso, político ou simplesmente popular que seja adorado por pessoas que acreditam (isso é muito conhecido) que morrer por seu Deus realmente o fará uma alma melhor. É como o MC Brinquedo alertou, certa vez, quando uma atitude arbitrária de filmar alguns garotos afirmando que todos eram usuários de maconha, uma inverdade na ocasião, poderia acarretar em consequências indesejadas nas redes sociais: “meça suas palavras, parça” . Parça, que significa amigo, em tradução livre.
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Lucas Jacinto é aluno do 7º semestre do curso de jornalismo da Unimep.
Boa reflexão! Gostei do texto \o/
Je NE PAS suis Charlie e nem sou fundamentalista. Penso, fundamentalmente, que a reação não é proporcional ao agravo o que a torna inaceitável e pq não vejo a violência como uma forma de reagir à coisas com as quais não concordamos. Ponto.