Em 31 de março de 1964, eu tinha 13 anos e meu pai Francisco Salgot Castillon (43 anos) era deputado estadual pela UDN (União Democrática Nacional), partido que desde os tempos de estudante, no Rio de Janeiro –onde fazia engenharia civil – ele escolheu para apoiar. Um partido frontalmente contra as políticas e a figura ditatorial de Getúlio Vargas, porém de orientação conservadora. Uma “nota estranha” na história política de meu pai – primeiro ele foi da UDN e depois ARENA (pois no golpe cívico-militar de 31 de março se instituiu no país o bipartidarismo). Mas, mesmo assim, foi cassado pelo AI-5 em outubro de 1969.
Na época, meu pai era prefeito de Piracicaba – eleito em 1968, em disputa com o candidato do MDB. Já adulta, com 18 anos, pude vivenciar melhor e com mais entendimento o que estava acontecendo no Brasil, especialmente em minha casa e com meu pai – se recuperadas as lembranças que tenho de 1964. Meu pai foi cassado e proibido de exercer atividades políticas e de votar nas eleições permitidas – que eram apenas as municipais. Os demais cargos públicos eram biônicos, quer dizer, escolhidos pelos militares no poder.
Em 1970, meu pai foi preso no 5°G-Can Campinas, sem muitas explicações, e lá permaneceu por quase uma semana. Depois começaram a dizer que aconteceram muitas prisões por todo o país porque haveria manifestações pelo aniversário do assassinato de Carlos Marighella (morto em uma emboscada por agentes do DOPS, ação coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, na cidade de São Paulo, em 1969). Assim, os militares acharam melhor prender os “comunistas arruaceiros e perigosos”.
Em 1970, eu já morava em São Paulo e me preparava para prestar vestibular. Porém, nesse dia estava em Piracicaba, era feriado e tinha saído com amigos. Quando cheguei, mais tarde, tudo estava em silêncio, achei que meus pais dormiam e me deitei também. Logo cedo ouvi minha mãe falando ao telefone com pessoas amigas que poderiam ajudá-la naquele momento. Escutei: “Francisco foi preso e não sei para onde foi levado”. Levantei assustada, abracei minha mãe e perguntei: “porque não me avisou?” Ela, como sempre forte e sabendo como lidar nesses momentos, disse: “nós duas não poderíamos fazer nada, vamos manter a calma”. Meu pai voltou depois de 5 dias e não foi torturado.
Em certa ocasião, perguntei a meu pai “porque a escolha da ARENA, a ditadura, prisões, censura e impossibilidade de votar?” Em relação à ARENA ele me respondeu que não tinha muita escolha, foram decisões e acertos entre partidos. E o golpe – na época chamado de “revolução” – em função da forte guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética e a sociedade civil se manifestando nas ruas, em muitas capitais, com medo das atitudes de João Goulart – então presidente da república. Ele e tantas outras pessoas achavam que seria uma intervenção militar de no máximo um ano – e a democracia seria restabelecida com novas eleições muito em breve. Meu pai não imaginou que duraria 21 anos – com tantas mortes, prisões, censura e atos inconstitucionais.
Meu pai faleceu em 2002, com 81 anos, sem entender e com muita tristeza quando falava ou relembrava a atitude tão arbitrária e sem fundamento que aconteceu em outubro de 1969 – em nossa família e em relação à sua cassação como prefeito de Piracicaba. Corrupção? Tentaram procurar indícios de falcatruas na administração e não encontraram. Comunista? Pode ser, naquele contexto fazer uma política social, priorizando a zona rural, a população mais carente e ao lado de trabalhadores e sindicalistas – em especial os ferroviários e metalúrgicos – como fez meu pai pode ter ajudado a fazê-lo entrar na lista dos inúmeros políticos cassados e das perseguições de todo tipo, com prisões e torturas pelo país.
Mas a causa principal, na opinião dele, foi um “golpe” na sua vida pública, pensado e engendrado junto aos militares pelo MDB local. Meu pai, com alto índice de popularidade e respeitado especialmente na zona rural, “incomodava os aspirantes” ao cargo. Não me esqueço da noite de 17 de outubro. Logo após a notícia dos políticos cassados – anunciados no programa A Voz do Brasil, pelo rádio – alguns “simpatizantes” da cassação do meu pai soltaram rojões embaixo do prédio (edifício Santo Antônio) onde morávamos, na Rua Boa Morte. Escutamos calados e estarrecidos com atitude tão agressiva.
Depois disso, com muitas dificuldades emocionais e financeiras, meu pai foi reconstruindo a vida profissional como engenheiro civil, prestando consultorias em algumas prefeituras da região. Com a anistia, se filiou/fundou partidos e participou de alguma maneira da vida política da cidade.
A minha vida em São Paulo – após 1969 e durante a ditadura – seguiu com trabalho e faculdade. Meus pais, dentro do possível, não deixavam as questões da cassação e todos os problemas que vinham dela atingir a mim e a meu irmão Sérgio – na época morávamos juntos em São Paulo.
Eu participava de manifestações de rua com cautela em função de meu pai. Porém, a vida acadêmica na FAAP sofria as consequências da ditadura. Cursei Comunicações/Publicidade de 1972 a 1975 e a turma de jornalismo e, em especial, os professores foram fortemente perseguidos depois das manifestações pelo assassinato de Vladimir Herzog. Professores foram demitidos e nós, formandos em 1975, nos recusamos a ter qualquer solenidade de formatura. Pegamos nossos diplomas bem contrariados com toda a situação, sem a participação de familiares e amigos, apenas com a presença do diretor da FAAP no auditório.
O golpe trouxe dores e perdas para muitas pessoas no Brasil. Uma das piores ditaduras da América do Sul e – no meu caso – foi conviver com a tristeza de meu pai: honesto, ótimo político e administrador, tanto como vereador e deputado estadual como prefeito – um dos melhores que Piracicaba já teve.
Ditadura nunca mais!
Nota dos editores: 22 prefeitos foram cassados em todo o país pelos militares em 1969. Salgot Castillon foi um deles. Os decretos de cassação não davam os motivos para o ato. Em 1972, relatório do delegado Joseph Cella informava que em todos os inquéritos abertos para apurar subversão na cidade nada foi apurado. O 5º G-Can (5º Grupamento de Canhões Anti-aéreos), unidade militar para onde Salgot foi levado, em Campinas, recebeu, para interrogatórios e prisões temporárias, boa parte de políticos e lideranças da região. Quando preso naquela área, Salgot teve como companheiros de cela os prefeitos de Araras, Leme e Limeira.
Lídice Salgot é natural de Piracicaba, vive e trabalha na cidade. Formada em Publicidade – em 1975. Nas artes visuais atua desde 1988 com participação em exposições coletivas e salões. É autora do livro “Meu Amor” – que reúne cartas trocadas pelos pais ao longo da vida e trabalhos de arte visual elaborados por ela.