Lições dos mestres

Lições dos mestres

Lição é uma palavra conhecida por todos. Afinal, viver é aprender, é assimilar o que as lições (dos outros, do mundo ou da vida) oferecem, desde o início até o fim da existência de cada um. Mas daí a entender e aceitar que há indivíduos que são portadores de lições a transmitir – mestres – há uma distância. Basta alguém assumir a condição, formal ou informal, de professor, orientador, tutor ou mentor para ser considerado mestre? Mestria requer transmissão (e então mestre é quem ensina) ou basta, para caracterizá-la, uma capacidade excepcional para fazer algo (e então mestre é o artífice habilidoso, aquele capaz de um “golpe de mestre” ou de realizar o “pulo do gato”)?

“O ato de ensinar, falado ou representado, por meio da palavra ou da demonstração exemplar, é obviamente tão antigo quanto o homem.” (p. 19) Mas “Continuarão a existir os tipos de relacionamento entre Mestres e discípulos que esbocei até aqui.” (p. 217) Eis do que George Steiner trata no seu denso e esclarecedor (além de altamente questionador) Lições dos Mestres, oportuníssima leitura neste momento histórico crucial de profundas transformações no mundo do conhecimento, por conta do desenvolvimento tecnológico aceleradíssimo representado pelas tecnologias da informação (TI), agora em seu estágio mais agudo, o da inteligência artificial (IA).

Não há dúvida de que as TIs e as IAs estão abrindo as portas e as comportas de novas possibilidades para os processos de ensino-aprendizado. Será que as novas gerações, com isso, poderão adentrar uma nova realidade, na qual as lições poderão prescindir de mestres e até mesmo de simples professores? Que papeis e funções restarão àqueles que, até aqui, têm sido considerados Mestres? Perderão sua profissão ou possiblidade de influência os professores, orientadores, tutores, mentores, intelectuais, poetas, escritores? Desaparecerão sob as sombras de gurus, digital influencers, coachs, líderes espirituais e demais tipos de vendedores de lições de vida?

Steiner é otimista. Apesar de perceber três tendências que, há décadas, segundo ele, vêm modificando em profundidade as relações entre mestres e discípulos (a saber: o novo papel da ciência e da tecnologia, a ampliação da presença feminina nas instituições de ensino e de pesquisa e a irreverência dos que aprendem face aos que ensinam), ele considera que

A libido sciendi, um desejo intenso de saber, uma angústia de compreender, está inscrita nos homens e nas mulheres, no que eles têm de melhor. O mesmo ocorre com a vocação de professor. Não há trabalho mais privilegiado. Despertar em outro ser humano poderes e sonhos que vão além dos seus próprios; induzir em outros o amor por aquilo que se ama; fazer do seu presente o futuro deles: esta é uma aventura tríplice que não tem igual (p. 222).

Por isso adverte: “uma sociedade que se volte para o lucro material, que não honre seus professores, é uma sociedade defeituosa” (p. 222).

Trata-se de uma opinião, claro. Mas “uma senhora de uma opinião”! Expressa no início e no fim do livro por alguém com experiência docente de cinquenta anos, em renomadas instituições acadêmicas de diversos países e que, sobretudo, entende que

Ensinar é pôr as mãos no que há de mais vital no ser humano. É tentar ter acesso ao que há de mais sensível e de mais íntimo da integridade de uma criança ou de um adulto. Um Mestre invade, força a abertura, é capaz de devastar a fim de purificar e reconstruir. O ensino ruim, a rotina pedagógica, um estilo de instrução cínico – quer seja o cinismo consciente ou não – são perniciosos. Destroem a esperança pelas raízes. O mau ensino é, quase literalmente, assassino e, metaforicamente, um pecado (p. 31).

Além de tudo, esta e outras tantas opiniões expressas em Lições dos Mestres são todas sustentadas por fatos históricos e argumentos sólidos. Como crítico literário, Steiner, neste livro, passeia por autores-Mestres, filósofos-Mestres, artistas-Mestres e até um esportista-Mestre, deles recolhendo exemplos, pois, como afirma desde o começo “(…) a única licença honesta e verificável para o ensino, a fonte da autoridade didática, é o exemplo” (p. 14).

Apesar de toda a dificuldade para acompanhar a erudição do autor, Lições dos Mestres é um verdadeiro prazer para quem gosta dos desafios de aprender, saber mais da vida e da obra de pessoas que são, elas próprias, lições eternas: Pitágoras, Empédocles, Sócrates, Platão, Jesus Cristo (“Um bom professor, mas não publicou” – p. 49), Platão, Plotino, Santo Agostino, Dante, Marlowe, Alain (Emile-August Chartier) e tantos outros da “república dos professores” (França), Goethe, Nietzsche, Heidegger, NadiaBolanger,  Confucio, numerosos rabinos etc.

Ao trazer à tona a vida e a obra de tantas humanas luzes, encarnadas em pessoas específicas, Steiner discute em profundidade a relação ensino-aprendizado que, segundo demonstra, carrega consigo um tipo de erotismo de alto risco (especialmente em tempos de apego exacerbado ao politicamente correto), do tipo conhecido nas histórias de Sócrates e Alcibíades, Abelardo e Heloísa, Heidegger e Hanna Arendt. Também coloca em discussão a propensão do discípulo em superar o mestre, às vezes traindo-o dramaticamente, como, por exemplo, no escandaloso caso de Heidegger em relação ao seu mentor e protetor, Husserl.

Há que se aceitar, que:

Ensinar sem grave apreensão, sem uma reverência inquietante pelos riscos envolvidos, é uma frivolidade. Fazê-lo sem se preocupar com quais podem ser as consequências individuais e sociais é cegueira. Ensinar com grandiosidade é despertar dúvidas no aluno, é treiná-lo para divergir. É preparar o discípulo para partir (´Agora deixem-me´, ordena Zaratustra). O verdadeiro Mestre deve, no final, estar só (p. 128).

 

(P.S.: tivesse eu lido este livro antes ou durante a escrita de meu livro Economia da Educação: para além do capital humano, sua conclusão não mudaria de direção, mas seria mais densa.)

[Edição utilizada: Lições dos Mestres, de George STEINER, trad. de Maria Alice Máximo (São Paulo: Record, 2005, 239 p.)]

 


Valdemir Pires é professores, economista e escritor.

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