Lembranças

Por mais que minha leitura avance por livros e enredos quase incontáveis, há um personagem incrível que até hoje jamais abandonou o meu cerco mental de reflexões e lembranças literárias. Como uma sombra dos meus próprios pensamentos, esse personagem me vem quando menos espero – e se mistura por conta própria junto a todos os outros demais personagens que, por ventura, passam pela minha mente ao longo do dia ou ao longo dos livros que leio. Seu nome? Eu não saberia dizer. Ou pior: sequer faço ideia se, de fato, esse personagem já fora criado por algum escritor. Trata-se de uma figura masculina, um homem de quarenta anos – ou um pouco mais – e tem como sua principal característica a fantástica capacidade de guardar na mente todos os acontecimentos que presencia. Tal como se seu consciente fosse uma imensa tela, esse personagem tem o poder de reter vividamente todos os fatos que já viu, ouviu ou soube por intermédio de outras pessoas.

Quando penso nesse personagem, tenho medo, aliás, de estar cometendo um roubo – porque, como disse, posso estar (sem querer e por falha de memória) plagiando alguém. No entanto, admito que se trata de um personagem curioso – e com potencial dramático bastante interessante. Então, traço mentalmente um breve enredo para ele. Imagino-o tão soturno como Drácula, um deus atormentado, perturbado pela percepção constante de que jamais conseguirá esquecer-se das coisas da vida. Condenado a carregar para todo o sempre a certeza exata de suas percepções, meu personagem desequilibra-se, quase enlouquece.

Como numa enorme fotografia que vai sendo completada minuto a minuto ad eterno, a mente desse meu personagem vive constantemente em tempo presente. Isso porque, como ele não precisa se recordar de nada, uma vez que tudo está sempre no tempo real de sua consciência, não é clara para ele a noção da passagem do tempo (que loca os acontecimentos num passado próximo ou distante). Nesse sentido, paradoxalmente nem mesmo se pode dizer que meu personagem tenha boa memória – afinal, o ato de evocar a memória pressupõe a ação (in)voluntária do esquecimento. Ou seja, como esse meu personagem não se esquece de nada, nada há para ser evocado, não havendo, portanto, o exercício do lembrar-se ou a prática da recordação – fundamental para que efetivamente coloquemos em funcionamento o jogo da memória. E por saber de tudo, sempre, é que meu personagem se descontrola – se desespera. Pois se há em sua história momentos de alegria e prazer que ele se alegra por nunca conseguir esquecer-se, há por outro lado muitas passagens que meu personagem jamais gostaria de ter vivenciado.    

Diante desse drama complexo, acho que ainda não sei qual destino final farei abater-se sobre meu suposto personagem e sua insólita história. Talvez ele enlouqueça completamente. Talvez não suporte mais o peso dos acontecimentos e se suicide. Talvez se perca nos fatos que guarda e, de um momento para o outro, deixe de ser. Talvez vire também, ele mesmo, um fato (ou fictum) – e desapareça em meio ao mundo caótico de seu próprio arquivo consciente. Anti-herói pós-moderno, meu personagem caminha na contramão da necessidade premente de memória que assola o homem contemporâneo – uma vez que, inserido num mundo no qual a falha de memória surge como um problema a ser superado (quando coquetéis de psicotrópicos reforçam a luta contra as doenças do esquecimento), tudo o que o meu personagem mais deseja é poder (mesmo que por instantes) esquecer-se da vida.  

Vítima de sua mente virtuosa, é fato que meu personagem carece de um descanso final. Com sorte, quem sabe lhe internarão num desses sanatórios onde repousam os esquecidos – os esquecidos pelas famílias e amigos ou os esquecidos de si mesmo. Ao lado deles, talvez o meu personagem se tranquilize – certo de que não ali não se encontrarão juízes para contestar o fato de que, sorrateiramente, meu personagem chama de alucinação todas as perturbações que avolumam em sua mente. Entre imagens boas e imensas tristezas que lhe tomam o consciente, talvez meu personagem encontre (finalmente) a calma junto os internos desse sanatório – havidos, todos, por sentirem quaisquer pequenas possibilidades de lembrança. 

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Alê Bragion dirige o Diário do Engenho

 

5 thoughts on “Lembranças

  1. Seu personagem me fez lembrar a evolução dos processadores de computador, no inicio eram apenas um, depois vieram as maquinas que tinham vários processadores, e mais recentemente vieram os processadores que tem mais de um núcleo, estes sim com capacidade de processar algumas informações simultâneas, ou seja, pensar varias coisas ao mesmo tempo, graças ao bom Deus nosso cérebro não trabalha como os processadores multi-núcleos, assim temos uma fila de informações que são processadas uma a uma e as informações seguintes são ordenadas pela quantidade de similaridade da informação inicial, imagino eu como seria estressante ter a capacidade de avivar pensamentos diversos simultaneamente, seria sofrimento elevado a N? ou seria alegria multiplicada?, acho que dependeria do transcorrer da vida deste cidadão, esquecer também é um milagre da vida, afinal nos permite perdoar e não sentir dor, permite que usemos nossa atenção para coisas novas, esquecer não é tão ruim quanto parece e seu personagem consegue demonstrar isso.

    1. Olá, Idinaldo!
      Mais uma vez agredeço a você por sua visita ao nosso site. Obrigado!

      Certamente, você pegou o “x” da questão. Esquecer-se das coisas é, muitas vezes, um alento! Sendo a memória um construto formado por fatos reais e ficcionais, é melhor usarmos a memória e deixarmos que ela nos posicione diante do que temos de esquecer (para lembrar depois) e do podemos manter mais vivo em nossa tela mental.

      Grande abraço!

      A. Bragion

  2. Incrível esse texto! Impossível não me enxergar nas entrelinhas à medida que você descreve seu personagem com tanta riqueza de detalhes.
    Pensei no início que ele seria um super-herói. Logo passo a sentir o quanto é dramático viver com seus poderes. Poderes?
    Ele não é um super-herói. É o anti-herói pós-moderno.
    Conseguir se perdoar ou perdoar quem nos colocou em situações de sofrimento não é a grande ferramenta para nos trazer de volta a leveza? Mágoas são esquecidas, medos são aliviados, as trevas vão aos poucos se iluminando. Não é a luta de todos? É nossa redenção. Bom podermos, mesmo sendo difícil. Ele não pode.
    Seu texto é um presente como reflexão para o fim de ano, quando temos a firme intenção de trilharmos no novo ano somente os melhores caminhos iluminados.
    Parabéns, Alexandre.
    Feliz Ano Novo.

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