Kriptonita para um Tirano Morto

Kriptonita para um Tirano Morto

O tirano apodrece, apodrece lentamente,
de dentro pra fora e de fora pra dentro,
fedendo a cinzeiro velho, a pele se desfazendo aos poucos,
as vísceras se expondo, como comadres curiosas
que se acotovelam na janela dos pontos que se abrem no ventre inchado,

e ele tenta balbuciar palavras sem sentido,
que se confundem no hálito nauseabundo,
o velho tirano, cujos olhos buscam nas paredes cinza,
vazias, a paisagem de sua glória triunfante,
quando multidões se prostravam, ululantes,
à sua passagem, quando perdigotava discursos grandiloquentes
nos palanques, ao lado da primeira-dama, antiga prostituta
conhecida nos desvãos dos ministérios por sua fúria,
sua insaciável ânsia de poder lascivo
(ele tenta masturbar-se à sua lembrança, mas nem isso),

quando era ele o tirano ali, pavoneando-se, seguro do julgamento da história,
ele, o herói, o rei do gado, agora um pavio apagado
(ela e seu maldito maquiador, onde estarão eles?)

o copo de requeijão vazio com um resto de saliva e água
na mesa de cabeceira, o bip do eletrocardiograma
a emoldurar-lhe o caminho para a morte,
(enfermeira!, enfermeira!)
o fôlego cada vez mais curto, a vista turva,

ah!, tivesse ele a sorte de morrer em batalha,
mas não, teve o destino dos covardes, e seus ouvidos
captam sons confusos que vem do corredor em frente,
e ele sente agora
o suor que lhe escorre pela fronte,
doutor?, doutor?, mas ele só consegue entender,
confusamente um último e definitivo nome: Caronte.

 


 

Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.

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