Já com a condição de saúde bastante frágil, o antropólogo Darcy Ribeiro, ateu confesso, teve um encontro com o teólogo Leonardo Boff, para um diálogo metafísico, abordando o tema da escatologia. Darcy dizia que somente um teólogo inteligente como Boff, com sua perspectiva libertadora, poderia sustentar um diálogo tão interessante e vibrante sobre o sentido da vida e da morte. Lembrei-me dessa passagem, sentado ao lado do mesmo Leonardo Boff, na missa celebrada por Padre Júlio Lancellotti, em alusão ao 7º dia da passagem do Papa Francisco e também em memória de um mês do falecimento do professor Ricardo Plaza.
Professor de física e entusiasta da ciência, Ricardo Plaza sempre se manifestou como agnóstico, não como um crente! Sua visão de mundo e sua atuação como docente, particularmente no Instituto Federal de São Paulo, o impeliu a defender os princípios da democracia e dos direitos humanos. Atenta e respeitando este perfil e currículo, professora Renata Plaza decidiu, então, fazer o convite para uma missa em sua memória, passado já um mês de sua morte. Quis então o acaso (ou a Providência?) que esta missa tivesse lugar na Capela São Judas Tadeu, no bairro paulistano da Mooca, sendo presidida por Padre Júlio Lancellotti, tendo como tema da liturgia a misericórdia e o 7º dia da morte de Papa Francisco, estando também presente o teólogo Leonardo Boff. Esse concatenamento de fatos e eventos acabou por promover uma sincronicidade incrível, inusitada, profundamente significativa e simbólica.
Com voz forte, firme e cheia de convicção, e com postura imponente, sem perder a dimensão da ternura e do acolhimento, Padre Júlio Lancellotti presidiu aquela missa de maneira emblemática. A ritualidade, dentro da mais que milenar liturgia da Igreja Católica, fazendo memória viva do sacrifício e testemunho definitivo de Jesus Cristo. Cada leitura, oração, gestualidade, canto e também palavras proferidas cumpriam a função simbólica de reviver, atualizando no tempo histórico, como metáfora viva, a experiência cotidiana dos discípulos com o próprio Jesus. No limite dos símbolos e rituais, ecoava-se um convite: seguir a Jesus bem de perto, assumindo, com coragem profética, o lado dos pobres e excluídos da sociedade.
Aquela missa, tomada por tantos sentimentos, símbolo e lembranças, constituiu-se como um autêntico ato político, de amor e resistência. As leituras bíblicas e depois a própria homilia de Padre Júlio Lancellotti não deixavam dúvidas sobre as opções políticas do Jesus histórico. Catequeticamente Padre Lancellotti ensinava sobre o lado de Jesus, sua atuação radical em prol da libertação dos pobres e marginalizados. Padre Júlio enfatizava que Jesus sempre agiu com coragem, assumindo um lado, uma posição política. Lembrei-me de uma conversa que tive, certa vez, com o Bispo de Piracicaba, Dom Devair da Fonseca, sobre se Jesus tinha um lado.
Para Padre Júlio Lancellotti, as transformações implementadas por Papa Francisco já deixaram raízes profundas e não é mais possível serem extirpadas. No decurso de seu Pontificado, Papa Francisco plantou muitas sementes, que cresceram, tornando-se uma linda e frondosa floresta de justiça e solidariedade. Na avaliação de Padre Lancellotti, com Papa Francisco, a Igreja Católica fez, teologicamente, o irresistível redirecionamento de voltar ao que há de mais genuíno e precioso no Movimento de Jesus: o amor incondicional ao próximo, especialmente aos mais vulneráveis socialmente.
Confesso minha alegria e expectativa de ouvir o Boff tão de perto, destacando o Papa Francisco, a partir do signo da misericórdia, como o único na história a inaugurar uma verdadeira primavera na Igreja, um novo começo, fundando uma genealogia de papas na linha da Teologia da Libertação, ligados aos pobres, e fiéis ao Jesus histórico: pobre, humilde, camponês, artesão, que faz inspirar toda ação do Padre Júlio, um profeto do nosso tempo, reavivando a fé. Oxalá Leonardo Boff e Padre Júlio estejam certos. O Conclave dirá! Aquela missa, que foi um autêntico ato político de amor e resistência, terminou com a Igreja cantando Solo Le Pido a Diós, um hino aos direitos humanos, eternizado na interpretação de Mercedes Sosa. Não poderia haver melhor forma de memória e homenagem ao nosso querido e muito saudoso professor Ricardo Plaza, que em seu contexto, no cotidiano como educador no Instituto Federal de São Paulo, também fez uma linda e singular história.
Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba.