Não há nada acontecendo,
não há nada acontecendo,
apenas os homens continuam a se perder,
voluntariamente, criando verdades que os enganem
do sepulcro ao berço, e entregando-as de bom grado
aos homens do poder, da religião e da ciência,
fingindo que viajar a Marte representa
o avanço da civilização contra a fome e a doença,
apostando nos discursos reconfortantes do mais-do-mesmo,
dobrando os joelhos ante os sinos que dobram,
ou as incompreensíveis línguas de anjos mortos,
que se contorcem como cobras nas bocas tortas
que glossolalam nos templos
de homens e deuses cansados,
cansados de mentir, mas não tem outro jeito,
fomos todos longe demais, já não há mais tempo
de voltar atrás, de fazer de outro modo,
e por isso tudo está normal,
e não há nada acontecendo,
não há nada acontecendo,
quando povos inteiros são arrancados de suas camas,
e crianças são baleadas na cabeça ante nossa complacência,
mas é tudo tão normal,
e a geringonça monstruosa se move lentamente
e seus ponteiros reafirmam a inexorabilidade do momento,
e só nos resta caminhar pra frente, pelo deus dos governos,
da religião, da ciência, dos infernos,
desde que não vejamos nada,
e nada virá pelos correios,
pois não há nada acontecendo,
nada acontecendo, nada acontecendo.
***
Sabe, essa kriptonita exangue
era para retirar os poderes do super-homem,
não importa se de Nietsche, se de Siegel & Shuster,
enfim, de qualquer super-qualquer-coisa, arre!,
como dizia Pessoa, estou farto de onipotências,
das grandes e das pequenas onipotências,
e também da falsa humildade, que esconde
um desejo ainda maior de preponderância,
mas desta vez por uma espécie de extravagância
do ego, em fazer-se pequenino para ser maior,
quer saber?, estou farto da mente humana,
com suas armadilhas óbvias, que nos aprisionam
desde que o primeiro homem chegou à sua caverna
dizendo ter pescado um peixe deeeeste tamanho,
e todos acreditaram, e ele completou contando
como foi a luta, e que, ao final, partiu-se a rede
e o bichão escapou, aos saltos, porque senão, senão…
e a patuleia a se divertir com a história, entre risadas,
e passaram fome, mesmo assim, mas diziam,
uns aos outros, que grande pescador, céus,
como pode um homem ser tão bom assim?,
estou farto dessas conversas, que as pessoas contam
para si mesmas, para se convencer de que são alguém,
afinal, não basta apenas existir, é preciso
que a vida seja essa aventura plena, mesmo que imaginária,
e levaremos para o túmulo a certeza de que fomos heróis,
todos nós heróis, perante o mundo ou perante nós,
e de que sempre tivemos razão, e a certeza, e a grandeza
de termos sido tão bons, que nos comovemos,
e as lágrimas que derramamos são tão autênticas,
e nossa dor é tão tamanha, que, se pudéssemos,
tomaríamos toda a humanidade sob nossa proteção,
para deixá-la a salvo de todo mal, de toda aflição,
e, ao final e ao cabo, de nós mesmos. (21-2-25)
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.