A hora é essa. Ou: Das necessidades do tempo e do amor.

A hora é essa. Ou: Das necessidades do tempo e do amor.

O que tanto toca a ótica do cronista em sua atenta toca de observador? A fé dos dias, a fúria das semanas, a força dos meses, a fluidez dos anos? Tanger o tempo em tratáveis letras pode parecer tarefa das mais tocantes. Mas nem sempre o ventre das ideias se inunda de conhecimentos saudáveis, férteis de boas-novas e prenhe dos bem-vindouros. Muitas vezes, o ser atento da pena se vê trocado pelo apelo tátil do sentir – e de um sentir agudo, transtornado, que abarca e abraça um mar confuso de tristes tratados e trágicas sensações. (Lembrando sempre, como nos ensinou Alberto Caeiro, que não basta não ser cego para ver). Nesse todo inconstante do real tangível, é preciso escolher – do mais puro e etimológico latim, do legere, raiz do verbo ler: eleger. Cabe, então, ao cronista, fazer tinir a taça do vinho bom – e tomá-lo logo, no logus da eleição dos sentidos, antes que os temores tomem conta do transporte das ideias na velocidade temporal dos dedos sobre as teclas do computador.

É preciso pressa. Porque, na televisão, nas redes sociais e mesmo nos jornais impressos e similares – e em tantos e tantos outros veículos do que tristemente teimamos em chamar de comunicação –, transbordam-se tonéis de atrocidades diárias. Na semana que ficou para trás, por exemplo, tirados os véus das tragédias cinzentas, transmutaram-se aos olhos do mundo as marcas sangrentas de feridas que julgávamos terapeuticamente tratadas, talvez curadas e até findas. Foram imagens do absurdo? Eram enredos de transtornados? Inimaginável termos de combater novamente questões tão diabólicas, tão demoníacas como as que – de onde viria isso tudo? – fomos obrigados a ver nesses dias. Latentes grupos nazistas, sectaristas, racistas saíram de seus cochos de hibernação e ignorância para buscarem o alimento sangrento de sua existência doente, maléfica e inútil. Igualmente triste, em outros campos do planeta, atentados tombaram em praça pública turistas e cidadãos – civis, no termo dito – em plena temporada de férias. Por aqui, em nossa mátria renegada e corrompida, crianças, adolescentes e outros tantos inocentes pagaram (e pagam) com a vida o sopro de vela de uma guerra velada e também civil.

Ao olhar do cronista, a opção se abre – então – em trevas. Como escrever depois disso tudo concretizado em camadas de sal coronário. Por outro lado, como não escrever, como não dizer do que se viu e ouviu nas fronteiras das inimaginadas pautas dos telejornais? Como não dizer do que se leu e apreendeu em duras gotas de sangue a cada página convertida em agônicos necrológicos. Afinal, cronicar é sincronizar a almacrônica, é também ligar as antenas da raça (como escreveu Thomas Mann) a fim de captar o que, no cronos da existência, se molda mesmo que à revelia, mesmo que ante a contrariedade sintomática da seleção dos temas para o anúncio do dia. Na percepção do (in)sondável, vemos que em tempos como o que adentramos não há mais como fugir para os campos de delícias dos parnasianos, não há mais um fugire urbem para puxarmos pelo rabo nem uma aurea mediocritas que nos acolha sob as árvores. Por isso, é preciso pressa. Por isso, cronicar. Apesar da desilusão do pintor que vaza a tinta pela tela, é preciso fazer  o amor, mesmo sabendo – no entanto – que é ele quem mais se morre nas vielas e becos, assassinado por capuzes ocultos – em noites ocultamente secretas. Mesmo sabendo que é ele quem morre nas ruas, nos assaltos, nos encontros marcados com a indesejada das gentes. Que é ele quem mais (nos) falta em tempos de previsões tão belicamente alarmantes.

Por isso, é preciso extrair do cronista o seu grito de Munch. Um grito de alerta. Um berro de terror prévio em prol da não conclusão de uma temerosa antevisão. É preciso dar esse grito nas esquinas, nos prédios, nas ruas, nas escolas, nas igrejas, nos jornais e, assim também, nas crônicas semanais. Mesmo que se trate de crônica acanhada, num jornal do interior. É preciso fazer prevalecer o amor. Sobre tudo e sobre todas as coisas. É preciso gritar o amor, antes que o ciclo da história nos ponha debaixo, novamente, da roda do destino. A hora é essa. O tempo e o amor urgem.

(Crônica publicada em A Tribuna Piracicabana, em 22 de agosto de 2017)

 


 

 

 

Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

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