Nos pés não mais o chão, a grama verde da entrada da pequena área. Aérea sensação de voo, abandono terreno, mão direita buscando ares de pássaro, mão esquerda pressionando o ar para baixo, facho de vento em elevação. A bola em trajeto de olhos, lenta que veloz, se achegando da ponta em cruzamento incisivo, preciso, em precisa ação. Quanto tempo duraria a estadia deles nos ares, nem jogador nem bola saberiam dizer: segundos transformados em ampulhetas obstruídas, caídas de lado sobre a mesa da ilusão. Flutuado, flutuante, alado, no tempo da bola era apenas ele, o jogador, jogando parado num existir feito de oxigênio e expectativa de consagração. No tempo dos homens, eram apenas agora os dois – dois em quase um, em fatal que fatídica próxima oclusão: atacante e bola, desejo e sonho sob a mudez repentina da torcida coração.
A bola – viajante viagem – segue navegando um leito feito de etérea imagem, ponte-aérea, míssil em missão, em direção a uma testa que – em teste – anseia pela batida certa, retinas abertas a buscar precisão. Não há mais tempo. Não mais espaço. Não há mais velocidade. Tudo são frames, blocos que se sobrepõem. Na visão do jogador, no para além da bola, restam apenas espectros brancos, desfocados cinzas, borrão verde distante anos-luz do corpo astronave que sobe, sobe, sobe. Lá de cima o campo é como a Terra a se admirar do espaço: circunferência trançada por linhas brancas que mal podem ser percebidas. E o atacante ataca a atmosfera em espera do cometa de couro que gira e se aproxima e se aproxima. Do alto entre estrelas tudo é solidão e ansiedade, receio e vontade, silêncio e sina.
Em breve o choque trará o som da vida. Big bang, a colisão frontal entre as esferas explodirá em gritos, urros, estrondos de bombas, berros e palmas. Seja qual for o destino selado pela pancada e seu ricochete final, uma turba sonora romperá os ares, derrubará a nave ora suspensa ante as traves e destravará a existência numa investida a insurgir da boca imensa das torcidas. Então, o jogador pousará como um paraquedista que erra a chegada ao solo, tropeça e se estatela no chão. Depois, sujo da lama do esforço, ele colherá com o olhar, no fundo das redes, a cena derradeira de sua expedição – esperando encontrar nela a bola aterrada no gol, sol em repouso e sem sistema ou direção. Aí – e o jogador sabe na pele disso – um arrepio o levantará num raio e uma overdose de hormônios invadirá seus sentidos e lhe fará gozar como poucos.
Agora, porém, é a bola. Agora é o contato real e concreto que se impõe ereto no tato. Na testa em tela a bola sela sua primeira jornada. O jogador já não joga, mas sabe que o jogo agora é que começa. Sua cabeça tabela se revela em flor e a cor da decepção, outra possível opção de desfecho, o flecha em segredo de condenação. Em direção à meta como se vai à Meca ou a Sé, a bola se desloca impulsionada pelo artilheiro em fé. Se subir para outros mundos distantes, ela levará consigo a alma do jogador em infernos de degradação. Ausente o gozo, ausente a estupefação dos gladiadores aclamados em arenas de batalhas vencidas entre leões e algozes, sucumbirá o artilheiro – outra vez solitário, humano e terreno. Jogar tem seus ricos. A bola é só abandono em perseguição de alvo. O jogador pensa, como sempre, se não é melhor ser essa a última vez. Talvez o melhor a fazer seja abandonar a partida, acostumar-se ao banco ou despedir-se do jogo em vida.
A bola segue.
O artilheiro, argonauta que era, inicia sua decida sem ainda saber o que lhe espera. E desce, desce, desce. Em instantes, um som divino criador recriará o universo – e o espetáculo do jogar o jogo encherá de um novo destino e de novas realidades o mundo: microcosmos do jogador e do estádio.
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.